Por Alaor Chaves
A conquista da medalha Fields pelo matemático Artur Avila é um momento oportuno para repensarmos a educação brasileira. Isso porque o prêmio não foi um evento fortuito, nem só decorrente do brilho incomum do premiado, mas em grande parte fruto da política do IMPA, singular no panorama brasileiro, de garimpar adolescentes especialmente dotados para a matemática e dar-lhes precocemente formação de alto nível neste campo. Essa política, que vem sido praticada há bom tempo, destoa de toda a filosofia e prática da pedagogia brasileira, e para levá-la adiante o IMPA teve de contornar obstáculos existentes no Brasil ao tratamento distinto a pessoas distintas em matéria de educação.
Antes de descrever a formação precoce em matemática adotada pelo IMPA analisaremos a pedagogia do ensino brasileiro. Esta se apoia na equivocada premissa de que todas as pessoas saudáveis nascem com os mesmos dons artísticos e intelectuais e que seu desenvolvimento é resultado unicamente do ambiente familiar e escolar. A mais enfática proclamação dessa ausência de características e aptidões mentais inatas foi feita pelo psicólogo John B. Watson (1878-1958): “Deem-me uma dúzia de crianças saudáveis, bem formadas, e meu próprio mundo para criá-las, e garantirei tomá-las aleatoriamente e treinar para ser qualquer tipo de especialista que eu escolha – médico, advogado, artista, líder comercial, e até mesmo mendigo e ladrão, independentemente dos seus talentos, inclinações, tendências vocações e raça dos seus ancestrais”. Essa crença na ilimitada maleabilidade da mente humana não é levada a sério em nenhum outro sistema educacional do meu conhecimento, mas constitui uma das bases da educação brasileira. Segundo nossos pedagogos, as crianças e adolescentes devem e podem seguir a mesma trilha educacional e percorrê-la no mesmo ritmo. Isso gerou no país grades curriculares extremamente inflexíveis, que negam ao estudante o direito de, em adição a um pequeno conjunto de disciplinas essenciais obrigatórias, escolher as outras disciplinas segundo suas preferências e dons naturais. A grade curricular é quase só composta de disciplinas obrigatórias e elas são tão numerosas que é impossível aprender bem qualquer delas. No ensino médio, há treze disciplinas obrigatórias, quando o razoável seria de três a cinco, fato que alarmou Aluysio Mercadante quando este assumiu o MEC em 2012. Prometeu reduzir o número para quatro, mas a promessa se perdeu em discussões sobre a maneira de adaptar a reforma aos quadros docentes existentes nas escolas, até cair nos esquecimento. Além do mais, aos estudantes especialmente bem dotados é negada a possibilidade de queimar etapas para atingir rapidamente níveis mais avançados de formação, até porque a existência de pessoas singulares não é oficialmente reconhecida, embora o fato seja amplamente aceito pelo senso comum e solidamente comprovado pela psicologia experimental.
Isso é gravíssimo e precisa ser corrigido, principalmente porque o governo formulou recentemente o Plano Nacional de Educação, iniciativa muito positiva que prevê a aplicação de 10% do PIB em educação, mas que sofre a grave deficiência de não rever e reformular os fundamentos pedagógicos que norteiam a educação brasileira em todos os níveis. Cláudio de Moura Castro, ex-presidente da Capes, afirmou que pedagogia no Brasil é ideologia, não
ciência. Eunice Durham, também ex-presidente da Capes, foi mais longe ao afirmar que o Brasil ganharia muito se fechasse todas as suas faculdades de Educação. Mesmo discordando de Durham, acho que a modernização do nosso ensino é impossível sem profunda reforma nas nossas faculdades de educação e nos cursos de licenciatura.
Depois de uma formação básica excessivamente “abrangente” e uniforme para todos, paradoxalmente para ingressar na universidade o adolescente é forçado à opção precoce por um curso – sem conhecimento adequado sobre as diversas carreiras – no qual ele irá receber educação excessivamente especializada. Uma vez dentro de um curso é quase impossível mudar para outro. Também no nível superior, queimar etapas de formação é no mínimo desestimulado e todos acabam avançando no mesmo passo.
Esse tipo de educação é especialmente desastrado para pessoas com dons singulares para alguns campos, tais como música, matemática e ciências. Ocorre que nesses campos as pessoas só realizam plenamente o seu potencial se receberem educação intensiva e avançada enquanto ainda são muito jovens. Nessa fase de desenvolvimento, em vez de uma formação generalista, o mais indicado para essas pessoas singulares é uma formação precocemente especializada e do mais alto nível.
Como disse o célebre matemático Henri Poincaré, um homem não se faz matemático, ele nasce matemático. Mas se não receber boa formação matemática desde a infância, esse dom nato mingua irrecuperavelmente. Na sua maioria, os grandes matemáticos da história já eram grandes matemáticos ao atingir a idade biologicamente adulta. O mesmo se pode dizer sobre os grandes instrumentistas. No Brasil, essa realidade é ignorada, exceto no caso dos instrumentistas. O IMPA – Instituto de Matemática Pura e Aplicada revela uma fé inabalável nesses fatos. Por isso, há muito tem feito um trabalho persistente de busca de crianças especialmente dotadas para a matemática, às quais se empenha em dar formação matemática de alto nível antes que atinjam a idade adulta. Não é incomum que jovens sejam aceitos como estudantes de pós-graduação no IMPA antes de concluir o ensino médio. Foi o caso de Artur. Ao conquistar, aos quinze anos, uma medalha de ouro nas Olimpíadas Internacionais de Matemática, o garoto atraiu a atenção do IMPA, onde obteve o grau de mestre em 1997, mesmo ano em que ingressou na UFRJ para cursar matemática. Em 2001, quando terminou o bacharelado, também obteve o grau de doutor no IMPA. Para atender as leis brasileiras, os títulos de mestre e doutor só são concedidos após o término do bacharelado.
Após longa prática dessa política do IMPA, ela foi estendida de forma adaptada às nossas regras educacionais a outras universidades por iniciativa da SBM – Sociedade Brasileira de Matemática, criadora da OBMEP – Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas. Isso foi feito por meio do PICME – Programa de Iniciação Científica e Mestrado, realizado em parceria com a Capes e o CNPq. Estudantes matriculados em universidades que ofereçam mestrado em matemática reconhecido pela Capes, e que tenham obtido pelo menos uma medalha (bronze, prata ou ouro) na OBM – Olimpíada Brasileira de Matemática ou na OBMEP, podem, após uma preparação realizada por meio de Iniciação Científica, com bolsa do CNPq, fazer o mestrado em matemática concomitantemente com a graduação, com bolsa da Capes. Embora o PICME seja um programa da SBM, sua coordenação nacional é de responsabilidade do IMPA, um instituto do MCTI, embora o coordenador não precise ser dessa instituição.
Muitos graduandos de outras áreas, tais como engenharia, estão fazendo mestrado no PICME. Isso é muito interessante: aos 22 ou 23 anos o rapaz ou moça forma-se em engenharia, obtendo ao mesmo temo o grau de mestre em matemática, o que faz dele um engenheiro muito diferenciado.
O PICME, excelente iniciativa da comunidade de matemática do Brasil, poderia ser estendido a outras áreas. A física é uma delas. Nos últimos anos adolescentes brasileiros medalhistas nas Olimpíadas Brasileiras de Física também conquistaram medalhas de ouro nas Olimpíadas Internacionais de Física. Muitos deles optaram por buscar educação mais ágil em universidades estrangeiras de ponta com sistemas flexíveis de aceitação de alunos. Ruim para o Brasil, pois provavelmente os perderemos para sempre.
Após essas boas notícias, voltemos ao nosso anacrônico sistema educacional. Os problemas da educação brasileira não se resolvem só com a alocação de recursos financeiros abundantes. Sem mudanças profundas no sistema, e refiro -me a mudanças no cerne da sua filosofia, por mais dispêndios que façamos no setor, jamais teremos educação de alta qualidade.