Ao amigo Alberto Gaspar

Notas de falecimento são sempre muito difíceis, principalmente quando é sobre alguém que se tornou um grande amigo. Conheci Alberto Gaspar, em 1994, quando fomos convidados pelo Prof. Ernst Hamburger, para compor a equipe que elaborou o Curso de Física do Telecurso 2000.

Eu, em meio ao meu doutorado, e ele, recém-doutor. A partir de então, passei a conhecer uma pessoa excepcionalmente alegre, divertida, brincalhona e, ao mesmo tempo, seríssima quando tratava da Física. Depois, foram vários anos de convivência no Departamento de Física e Química da Unesp em Guaratinguetá. Aqueles que conheceram seu humor constante e refinado, sabem que poderia escrever pequenos gracejos ao longo dessa nota, sem o risco de desrespeitá-lo.

Nesse período de convivência conheci sobre a riqueza de sua vida. Nasceu no Bexiga, caçula dos irmãos, e, apesar da descendência portuguesa, manteve ao longo de sua vida o sotaque típico do bairro, lembrando os “italianos” das novelas. Cursou a Licenciatura em Física na USP, graduando-se em 1966 e passando a atuar como professor em escolas públicas da capital de São Paulo. Relatava que, à época, foi possível comprar um apartamento e um carro com o salário de professor!

Sua relação com o IFUSP foi estreita, trabalhando como professor do ensino médio nos projetos de Ensino de Física desenvolvidos na década de 70, na aplicação do “Física Auto-Instrutiva” (FAI) com o Prof. Fuad Daher Saad. Nessa mesma época, começou a desenvolver equipamentos experimentais de baixo custo, junto com o Prof. Norberto Cardoso Ferreira (Tex). Esses equipamentos compuseram grande parte do acervo da “Prateleira” no IFUSP, hoje conhecido como o Laboratório de Demonstrações Ernst W. Hamburger.

Gaspar também trabalhou com Ernst Hamburger e com a equipe que produziu o Projeto de Ensino de Física (PEF), desenvolvendo de atividades experimentais, foco metodológico do período. Como resultado dessa participação, começou o mestrado em Ensino de Física no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física da USP, sendo o primeiro estudante sob orientação da Profa. Anna Maria Pessoa de Carvalho. Sua dissertação versou sobre uma proposta curricular para o Estado de São Paulo, fruto de sua experiência na participação em projetos de ensino.

Nas décadas seguintes dedicou-se a dar aulas, chegando a assumir uma carga de 60 aulas semanais! Apesar do reconhecimento como professor, tomou a decisão, já com o doutorado iniciado, de fazer um concurso na Unesp de Guaratinguetá e se mudar para Cruzeiro (SP), terra natal de sua esposa. Lá, criaram os filhos, ajudou a implantar um centro de ciências (que leva seu nome), a formar professores e a desenvolver a vida acadêmica. Seu doutorado foi pioneiro na inclusão da perspectiva vigotskiana na análise dos processos interativos em museus de ciência.

Defendeu seu doutorado sob a batuta de Ernst Hamburger, que lhe abriu as portas da Estação Ciência, onde participou de vários projetos, inclusive o da construção de maletas com experimentos, a serem utilizados por professores do Estado de São Paulo, além dos cursos para professores e monitores e exposições que ajudou a organizar.

Já doutor, elaboramos e redigimos o material didático que sustentou o Telecurso 2000 de Física. Nessa época, fui contratado na UNESP de Guaratinguetá, onde permaneci por quase uma década dividindo sala com Gaspar. Nesse período vivenciei sua notável engenhosidade na criação de experimentos, muitos dos quais apresentados em seu livro “Experiências de Ciências para o Ensino Fundamental”, que teve nova edição ampliada (“Atividades experimentais no Ensino de Física: uma nova visão baseada na Teoria de Vigotski”). Essa ampliação procurou incorporar as conclusões oriundas de sua tese de livre docência (“A teoria de Vigotski: um novo e fértil referencial para o Ensino de Ciências”), na qual aprofundou seus estudos sobre a teoria vigotskiana.

Era membro dos Programas de Pós-Graduação em Educação em Ciências da Unesp e do Interunidades em Ensino de Ciências da USP, onde orientou diversos mestrados e doutorados, mesmo após se aposentar.

Nos últimos dois anos, voltou a morar em São Paulo, sendo convidado a lecionar no Programa Interunidades em Ensino de Ciências da USP, onde compartilhamos um curso sobre as perspectivas vigotskianas para a experimentação no ensino de ciências.

Pudemos tomar cervejas, enquanto me contava com ânimo as inovações que estava introduzindo no seu best seller “Física”, um dos livros didáticos mais conhecidos no país. Além das novidades do livro sobre resolução de problemas (“Problemas conceituais de Física para o Ensino Médio”), que lançaria no próximo Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Introduziu novidades conceituais nos conteúdos de seus livros, como o “efeito Coanda”, ou a apresentação do fenômeno da “moeda que imantada atrai com mais intensidade outra moeda do que próprio imã que a imantou”. Para este último fenômeno, sempre tinha uma explicação na ponta da língua: “dinheiro atrai dinheiro”!

Finalizo este texto-homenagem ao meu amigo com sua célebre frase: “Segter Quaqui Sex Sabdom”, dita de forma seríssima em meio aos olhares atônitos dos que estavam presentes. Ao ser indagado se havia aprendido latim na sua infância, respondia com simplicidade: “Não. É o que está escrito naquela folhinha do calendário da semana…” (Seg, Ter, Qua, Qui, Sex, Sab, Dom).

Se por um lado, com sua partida, Gaspar nos priva de uma grande dose de humor que tornava a academia um lugar agradável de se viver, por outro, deixa um enorme legado de trabalho para o ensino de Física.

Cristiano Mattos
Instituto de Física
Universidade de São Paulo