Professores da UnB publicam artigo na Revista Brasileira de Ensino de Física que celebra o professor Henrique Fleming, da USP, com uma visão de maravilhamento sobre o processo científico de Galileu Galilei na descrição das marés
Há experiências de vida que, apesar de serem tão diferentes daquilo que realizamos hoje, nos motivam e representam profundas lições. Isso é bem verdade para o físico Ademir Santana, professor da Universidade de Brasília (UnB), que trabalha com teoria quântica de campos e física matemática. Ele nasceu na ilha de Santo Amaro que abriga o município do Guarujá, em São Paulo, numa família pobre, vivendo em um bairro operário. O pai era estivador no Porto de Santos e a mãe, dona de casa apaixonada pelas estrelas e por leituras. À noite, ela explicava a Ademir a história daquelas luzes no céu. Quando o pai se aposentou, resolveu pescar para ajudar no sustento da família. E Ademir, ainda menino, seguia junto no barco para o mar na região da baia de Santos. Quem pesca sabe quão importante é entender o vai e vem das marés, não apenas para navegar como também para encontrar os peixes. “Eu adorava essa intimidade com o mar, com a maré. Tinha que tentar se antecipar para fazer certo tipo de pesca ou não, tinha que saber da altura das marés; era meio que fundamental”, lembra Ademir.
O encantamento pela natureza, pelas estrelas e pelo mar, foi o primeiro maravilhamento de Ademir com o mundo, que o levou a estudar física na UnB. No início dos anos 1980, veio a São Paulo fazer o mestrado, e depois o doutorado, na Universidade de São Paulo (USP), onde conheceu o amigo Samuel Simon, que estudou física, mas seguiu, no doutorado, o caminho da filosofia. Hoje é professor do Departamento de Filosofia na UnB. Foi no mestrado que ambos sentiram revigorar esse maravilhamento com a natureza, durante as aulas do professor Henrique Fleming, que completou 85 anos em outubro de 2023.
Além de Fleming, os dois amigos tiveram aulas com professores como J. David M. Viana, Mário Schönberg e Sílvio Salinas. “Foram professores que imprimiram um selo não só na minha carreira como pesquisador e docente, mas na forma de olhar o mundo, com um grande deslumbre. A base disso é uma certa generosidade com relação às coisas todas. É a possibilidade de se fascinar com os fenômenos. Disso nasce, com o tempo, na medida que se vai estudando e refletindo, certas angústias específicas. A angústia aqui não guarda o sentido de uma disfunção clínica, de doença, mas sim de natureza intelectual, com relação aos objetos do existir, de como lhes chegam, o que se traduz em perplexidade. Essa angústia intelectual nunca é resolvida completamente; e passa a ser uma companheira de andada”, diz Ademir.
Schönberg, aponta Ademir, dizia que era necessário “amar o elétron”, nas primeiras aulas após a sua reintegração à USP, depois de ser aposentado forçosamente pela Ditadura (1964-1985). A ideia era instigar os alunos a se debruçarem sobre o mundo com respeito e admiração, porque não há teoria capaz de explicar a natureza de forma completa, exaustiva. Há sempre novas surpresas, novas descobertas, “o método científico não tem como objetivo, e não provê, uma resposta definitiva a nada, mas é uma boníssima lente para se ‘olhar a Lua’”. E continua Ademir: “A marca fundamental do professor Fleming, e desses outros professores os quais mencionei, é essa. Era a maneira como ele falava sobre os fenômenos físicos, de um modo límpido. Esses professores têm esse alto quilate, vamos chamar assim: um se debruçar sobre as coisas com cuidado. Esse olhar calmo para o mundo era a postura de Fleming. Com a abordagem baseada na metodologia científica não é possível dizer em definitivo o que é o elétron, mas podemos ir em sua direção com o método que temos, sem ambiguidade. Isso é um dos significados da fala do Professor Schönberg sobre o elétron.”
Essa atenção e cuidado de Fleming eram uma fonte de inspiração a quem assistia suas aulas. Ademir viu reviver disso suas memórias de infância. Durante as aulas de Cosmologia e Gravitação, Fleming iniciava com cálculo tensorial e a teoria da gravitação de Einstein, antes de tratar de modelos cosmológicos. Na primeira edição da disciplina, Fleming pediu para que os alunos refletissem sobre os efeitos da gravidade, utilizando a lei da gravitação Newtoniana, até pelo interesse e atualidade daquela teoria no estudo, por exemplo, das formações de estruturas do espaço sideral. O professor então entregou uma primeira lista de exercícios. Um desses fora assim formulado: “Use o fenômeno das marés para estimar o quanto você puder sobre a Lua (distância, massa, período de rotação, raio, etc). Ignore os efeitos do Sol”. E, em decorrência de sua relação com mar e as marés, Ademir deu um salto perpendicular nessas águas, em cálculos que levaram mais de um mês para ficarem prontos, fato que provocou certo entusiasmo no Professor Fleming, que havia solicitado apenas uma reflexão.
Tempos atrás, Ademir, que guardou todos os exercícios daquela época e as Notas de Curso que estavam redigidas à mão por Fleming, resolveu ir ainda mais fundo, bebendo na fonte dos escritos de Galileu Galilei em seu embate com a Igreja Católica no século 17; assunto bem conhecido por seu amigo Samuel. Para comemorar os 85 anos de Fleming, os dois professores da UnB escreveram o trabalho intitulado “O problema de Fleming sobre as marés e as conjecturas de Galilei”, publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física (RBEF), vol. 46, e20230338 (2024). Mais uma vez, físico e filósofo revelam o respeito profundo sobre a construção do saber científico num maravilhamento sobre a natureza.
A preocupação central de Galilei era provar que a Terra não era o centro do Universo, mas que se movia no espaço sideral; e que este movimento era responsável pelas marés. A partir de experiências com a água, e de certa maneira antecipando a noção de campo, Galilei fez uma análise qualitativa requintada sobre as características cinemáticas das marés.
“A combinação do movimento da Terra girando em torno do próprio eixo com o deslocamento no espaço zodiacal gera nas águas oceânicas um processo de aceleração e desaceleração. Este processo dá origem às marés e é o principal resultado de Galilei. O movimento de translação que Galilei menciona por inferência (e como possibilidade) foi o da elíptica da Terra em torno do Sol. Era o que Galilei dispunha à época”. Mas o importante era a combinação dos movimentos que Galilei utilizou para explicar, por exemplo, o motivo de ocorrer marés no mar Mediterrâneo, sem escoamento de água Atlântica pelo estreito de Gibraltar como alguns pensavam naquela época, enquanto não há maré no Mar Vermelho.
“Galilei não tinha a informação de que a Terra e a Lua constituem um sistema gravitacional binário, girando e se deslocando em torno do Sol. O centro de massa desse sistema está dentro da Terra, mas obviamente fora do centro da Terra.” Explica Ademir. “Neste contexto, entra o problema de Fleming”, explica o físico sobre o modelo necessário para se calcular o efeito desse movimento das marés, e como que, a partir disso, é possível até mesmo avaliar certa composição mineral da Lua.
É corriqueiro ler que Galilei “errou” ao entrar em pleno embate com a igreja no caso específico das marés, porque em sua análise não havia priorizado a influência da Lua. Ademir e Samuel citam certos artigos recentes que afirmam categoricamente coisas como “Galilei foi vencido pelas marés”. “Isso é ótimo para quem está procurando holofote, dado o prestígio de Galilei. Entretanto, quem procura holofote em ciência acaba por se deparar, cedo ou tarde, com a escuridão”, atesta Ademir. De fato, depois de quase quatro séculos, essa leitura sobre o suposto erro de Galilei vem sendo desmontada. Esse desmonte e as observações de Ademir remetem a um dito conhecido: em geral a pessoa que aponta o dedo, no caso para um erro que Galilei tenha cometido, não imagina que no fundo está apontando outros três dedos a si própria. Como destacado em alguns trabalhos cuidadosos na literatura da última década, muitos dos algozes de Galilei parecem que nunca se debruçaram com critério suficiente a ponto de observar a beleza e o propósito científico do mestre Pisano em seus escritos originais. A solução do problema de Fleming, conduzida numa perspectiva dinâmica, se relaciona intimamente a análise cinemática conduzida por Galilei e lança novas perspectivas sobre esse debate, como explicitado no trabalho da RBEF.
Os pesquisadores Ademir e Samuel analisaram a evolução dos estudos das marés desde a Grécia e dos textos de Galilei, em particular o famoso “Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo – ptolomaico e copernicano”. O resultado não termina no artigo publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física. Os autores deram continuidade a pesquisa e preparam um outro texto mais geral e detalhado, explorando as consequências das conjecturas de Galilei. E não é apenas porque o objeto de estudo seja o mar. Ademir lembra que no espaço de nuvens de poeiras e formação de corpos celestes também ocorrem fenômenos tais quais os de marés. O que o leva novamente à infância, aos pés de sua mãe apontando os dedos para a noite escura.
Em síntese, diz: “Quando estudantes possuem bons professores, como aqueles que tivemos, que ensinam a observação do mundo e suas coisas, as pessoas aprendizes aprendem sobre si mesmas: a olharem para as civilizações; para os bichos; para as folhas; para os conflitos sociais; para o céu; para o mar; para as pedras. Sabem que as interpretações teóricas de hoje podem ser generalizadas ou modificadas no futuro. Como não há resposta última para coisa alguma, o que se depreende disso é uma construção coletiva, na qual a magia, a perplexidade, no mundo é o mundo em si mesmo: nenhuma hipótese adicional é necessária a esta constatação, que se realiza com o desenvolvimento de uma íris aguda.”
Ensaio-entrevista por Roger Marzochi