O estudo conseguiu explicar o mecanismo de transmissão de informações da bactéria Escherichia coli, que normalmente faz parte do trato intestinal de humanos e cujo conhecimento pode permitir maior compreensão dos seres vivos
O físico Bernardo de Assunção Mello, professor do Instituto de Física da Universidade de Brasília (UnB), conseguiu aprimorar as equações matemáticas em busca de entender o processo de quimiotaxia da bactéria Escherichia coli, que normalmente habita o trato intestinal de seres humanos e outros animais de sangue quente. Essa bactéria tem papel importante no processo de digestão de alimentos e produção de vitamina K. O estudo “A nonequilibrium allosteric model for receptor-kinase complexes: The role of energy dissipation in chemotaxis signaling” foi publicado em 12 de outubro de 2023 no periódico PNAS. O trabalho foi realizado em parceria com pesquisadores da University of Missouri, Princeton University e IBM Research – Thomas J. Watson Research Center: Yorktown Heights (New York, USA).
A palavra quimiotaxia expressa o movimento realizado pela bactéria em busca de alimentos, como maltose ou glicose, por meio de estímulos químicos. O físico, que começou a estudar essa bactéria em 2001 e publicou seu primeiro trabalho dois anos depois, explica que é possível compará-la à uma máquina dividida em três partes: na parte externa, há receptores na parede celular da bactéria que se ligam a elementos químicos que a atraem, como a glicose; quando uma molécula se liga ao receptor, um sinal é enviado, que ao entrar na bactéria, esses elementos vão processar o sinal e acionar proteínas, como a Che-Y; esta por sua vez aciona o terceiro estágio, que é a parte da bactéria que pode ser considerada como uma hélice de um barco, que a impulsiona para frente.
“A adaptação a estímulos de diferentes intensidades é um processo que se assemelha ao que ocorre com nossos olhos quando entramos na sala de cinema logo após o filme começar. A princípio, não conseguimos enxergar as poltronas até que os olhos se acostumem no escuro. No nosso caso, há milhões de células envolvidas. Mas a E. Coli é só uma célula, tudo acontece num maquinário muito simples se comparado ao de seres vivos multicelulares”, explica o físico.
Mello participou de pesquisas de forma a chegar o mais próximo possível do que se observa em laboratório. Dentro da Biologia, os físicos buscam dar um suporte quantitativo às pesquisas, criando fórmulas e equações matemáticas que possam traduzir o que ocorre com esses organismos. Os cálculos dos quais Mello havia participado anteriormente analisaram o processo de transmissão de informações fora e dentro da célula, sem considerar os processos que envolvem a liberação de energia, como a atuação da hidrólise do trifosfato de adenosina (ATP), a “energia elétrica” dos seres vivos. Seus estudos foram muito importantes porque explicavam grande parte do processo e também conseguiram descobrir que os receptores celulares se comunicam como uma rede de Ising, um modelo amplamente conhecido por todos os físicos e frequentemente utilizado para explicar o magnetismo.
Mas pesquisas recentes em laboratório, feita por biólogos, revelaram que o modelo que o físico brasileiro já havia criado precisava de ajustes porque, com a tecnologia atual, é possível determinar a quantidade de receptores no lado externo da célula em contato com os elementos químicos exteriores à célula, que extrapolam o modelo matemático. E, em seu novo estudo, Mello considera o processo de atuação da ATP na E. Coli. Composta por uma base nitrogenada (adenina), um açúcar de cinco carbonos (ribose) e três grupos fosfato, a ATP fornece energia à bactéria para reações irreversíveis. Ao entrar em contato com receptores, um fosfato é transferido a uma proteína envolvida na quimiotaxia, liberando energia.
“O que a gente tinha percebido é que havia um detalhe mal explicado. Apesar de o nosso modelo explicar como a célula é capaz de reagir aos níveis de concentração se adaptando ao meio, fizemos uma suposição de como isso acontecia, mas percebemos que não estava completamente correta”, explica Mello. “E um biólogo mediu a quantidade de moléculas no receptor. E vimos que era preciso fazer correção: essa ligação, da proteína Che-Y, que transfere do receptor para o motor, o acoplamento do grupo fosfato vem justamente de uma molécula de ATP. Quando um desses fosfatos é transmitido, ele se torna ADP, e ele deu energia para o processo, coisa que não tínhamos considerado. E fizemos melhor os cálculos e mostramos que o mesmo modelo poderia explicar o processo se eu considerar a energia entrando do grupo fosfato.”
Mello explica que há também um outro lado muito interessante da E. Coli, que apesar de ser muito estudada pela biologia, há muito ainda a se descobrir. “O átomo de hidrogênio, por exemplo, é o elemento mais simples, composto de um elétron e um próton, e por isso é um modelo para a física; a E. Coli é como se fosse o ‘hidrogênio’ da Biologia, que poderá ajudar a entender os seres vivos”, explica o cientista.
Há um processo de informação dentro da bactéria muito interessante. Para que ela possa se mover em direção a regiões com alta concentração de nutrientes, explica Mello, ela precisa ter uma “memória” da concentração que havia algum tempo antes. “Ela não tem neurônio, mas é uma espécie de memória que permite esse processamento de informações. E o nosso estudo revelou que o consumo de energia permite que esse processo seja mais preciso, mais sensível, tudo isso porque consome energia. Para melhorar um processo precisa gastar energia”, conclui o cientista brasileiro. Esta é uma pesquisa básica, sem aplicações no momento, mas que pode colaborar para ampliar o conhecimento sobre os organismos vivos.
(Colaborou Roger Marzochi)