Astrofísica vencedora do Prêmio Anselmo Salles Paschoa de 2022 defende a diversidade na formação de comitês da área e acredita que se deve ir além da espera por políticas públicas dentro e fora de universidades
Astrofísica e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) em Palotina, no Oeste do Estado, Rita de Cássia dos Anjos, mesmo possuindo facilidade em fazer amigos, conquistar prêmios e construir pontes dentro da área da Física, bem como com campos como o ensino e a comunicação, descreve-se como uma pessoa muito introspectiva. Ela é uma cientista negra que conseguiu destaque com muito esforço e apoio de amigos e orientadores. No entanto, no Brasil, persiste um racismo estrutural que ela precisa enfrentar e administrar constantemente, a fim de evitar confrontos incessantes.
Especialista no estudo da busca por respostas da procedência de raios cósmicos, por meio da colaboração brasileira no Observatório Pierre Auger, na Argentina, Rita venceu em 2020 prêmio Para Mulheres na Ciência 2020, promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC), L’Oréal e Unesco Brasil. Ela também atua com força no projeto do Cherenkov Telescope Array (CTA), cerca de cem telescópios que estudarão raios gama e que estão sendo construídos no Chile e nas Ilhas Canárias, na Espanha. Este é um projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), coordenado pelo físico Luiz Vitor de Souza, professor do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP), que prevê que o Brasil construirá até 23 telescópios.
Além dos recursos alocados pela FAPESP para o projeto, destinados ao pagamento de bolsas de pesquisa e à construção da estrutura de nove telescópios, a Fundação Araucária, do Paraná, liberou R$ 1 milhão, que permitirá a fabricação da estrutura de mais um telescópio e investimento em recursos humanos. O financiamento da Fundação Araucária foi obtido pelo empenho de Rita, que levou uma instituição com forte investimento em agribusiness a também dirigir seu olhar para além do infinito.
“Eu digo que não é o caso de ser pesquisa básica ou aplicada, mas vimos uma jóia a ser lapidada que precisava ser apoiada. Desde a primeira reunião, sabíamos que íamos apoiar”, afirmou no ano passado o professor Ramiro Wahrhaftig, presidente da Fundação Araucária, em entrevista a este jornalista free-lancer.
Ramiro explica que Rita tem o dom de aglutinar pessoas em projetos em comum, uma capacidade tão importante para desenvolver a ciência. “Você aposta não apenas no projeto, mas nas pessoas. Os cientistas que têm mais valor são os que sabem se conectar. Ela é muito jovem e quando eu tive a primeira reunião com ela pensei que era uma pessoa que tinha que apoiar”, diz ele, que já participou ativamente na criação de mecanismo para incentivo da pesquisa e do ensino no Paraná.
Mas Rita, vencedora da primeira edição do Prêmio Anselmo Salles Paschoa de 2022, concedida pela Sociedade Brasileira de Física (SBF) para incentivar jovens cientistas negros e negras, sentiu forte o racismo estrutural em diversas ocasiões, que ela prefere não comentar casos isolados, explica ela em entrevista enquanto estava em um projeto de colaboração na Bélgica para estudar jatos relativísticos na Universidade Ku Leuven.
Por ser docente da universidade, Rita avalia que as pessoas a respeitam, embora possam não gostar. E, convivendo com o racismo estrutural, Rita prefere evitar certos ambientes, para evitar desgaste psicológico. Isso, no entanto, não a impede de ocupar espaços de destaque na ciência, especialmente para incentivar que jovens estudantes negros e negras acreditem ser possível alcançar esses postos.
A Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio Contínua (PNAD) – Educação de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou grandes desigualdades. A taxa de analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais era de 3,4% de pessoas brancas enquanto que chega a 7,4% na população negra. A diferença é maior na faixa acima dos 60 anos: 9,3% para branco, 23,3% para negros. Em 2022, 36,7% das pessoas brancas na faixa etária dos 18 aos 24 anos estavam estudando, enquanto apenas 26,2% dos negros. Dentro dessa faixa, entre os brancos estudando, 29,2% estavam na graduação e apenas 15,3% entre os pretos e pardos. E 70,9% dos negros nessa idade não estudavam nem tinham concluído o ensino superior, enquanto a taxa entre os brancos foi de 57,3%. “A população negra representa cerca de 60% da população brasileira, mas atua em trabalhos de baixa escolaridade. Uma pesquisa antiga do IBGE mostrava que apenas 3% dos pesquisadores de pós-graduação são mulheres negras. Esse dado não deve ter mudado tanto, é muito pouco”, lamenta Rita.
Para ela, pesquisas como a da cientista Débora Peres Menezes, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e ex-presidente da SBF, que revela a baixa participação das mulheres em comitês de organização dos principais eventos de Física e como palestrantes, são muito importantes. E, além de concordar com uma cota para mulheres nessas posições, Rita também defende uma cota para cientistas negros e negras. “Eu acho importante, pode gerar bons resultados. Eu já vi eventos nos quais todo o comitê era formado de homens e os convidados eram homens, isso gera uma falta de identidade muito grande. Você acaba frequentando espaços que, pela falta de diversidade, você se pergunta se está no lugar certo. E nós já passamos por muitos caminhos, a gente não volta. Homens e mulheres negras vão até o fim e levam essa bandeira. Só o fato de ser mulher ou homem negro já é representatividade.” E, para ela, há muito que se fazer no incentivo de cientistas negros e negras dentro de instituições e universidades, sem a necessidade de esperar por políticas públicas. “Isso dá voz e oportunidade a todos.”
As políticas de cotas deixaram ainda mais evidente na sociedade brasileira o preconceito de grande parte da população, que se julga superior por causa da cor da pele. Cida Bento, cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), revela no livro “O Pacto da Branquitude” (Companhia das Letras), a forte relação do colonialismo e do capitalismo com o racismo, mostrando que a luta dos negros por igualdade na sociedade alimenta nos brancos o medo de perder privilégios, que respondem a esse movimento com o mito da meritocracia.
“As instituições públicas, privadas e da sociedade civil definem, regulamentam e transmitem um modo de funcionamento que torna homogêneo e uniforme não só processos, ferramentas, sistemas de valores, mas também o perfil de seus empregados e lideranças, majoritariamente masculino e branco. Essa transmissão atravessa gerações e altera pouco a hierarquia das relações de dominação ali incrustadas. Esse fenômeno tem nome, branquitude, e sua perpetuação no tempo se deve a um pacto de cumplicidade não verbalizado entre pessoas brancas, que visa manter privilégios”, afirma Cida. “De fato, branquitude, em sua essência, diz respeito a um conjunto de práticas culturais que são não nomeadas e não marcadas, ou seja, há silêncios e ocultação em torno dessas práticas culturais.” E, Rita de Cássia, vem com esse prêmio, fazer com que jovens negros e negras brasileiras sonhem além para quebrar com o preconceito.
(Colaborou Roger Marzochi)