Quadro “A view of Delft” (1652), de Carel Fabritius (1622 – 1654), pintura que pode ter tido a influência dos avanços de lentes usadas em microscópios e telescópios na Holanda. Crédito: Reprodução do site The National Gallery

Na comemoração dos 300 de Antoni van Leeuwenhoek, texto publicado na revista Física na Escola faz recorte historiográfico do desenvolvimento dos instrumentos óticos, explorando as relações entre arte, ciência e sociedade na República Holandesa do século 17

A ciência é o império da razão e a arte, da emoção. Certo? Ao menos é essa a sensação dos tempos modernos, nos quais há uma extrema segmentação do conhecimento. Mas essa afirmação não poderia estar mais errada. Apesar de a ciência buscar explicar o mundo por meio de teorias e experimentos, os cientistas também estão imersos na cultura de uma sociedade. E, assim como os artistas, cientistas também buscam na intuição e na abstração matéria-prima para suas teses.

“Até mesmo entre professores de física, a gente ainda vive uma cultura empirista. E nós, professores, às vezes esquecemos também que a ciência é impulsionada pela imaginação. A ciência é um processo criativo”, afirma Marlon Cesar de Alcântara, professor do Laboratório Interdisciplinar de Ensino de Ciências do Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais (IF Sudeste MG), Campus Juiz de Fora. Marlon e seus colaboradores publicaram no fim de junho, na Revista Física na Escola, o artigo “O olhar acurado e a descoberta de um ‘novo mundo’ a partir do microscópio”, que expressa a inter-relação entre arte e ciência.

O texto também foi escrito em parceria com profissionais do mesmo instituto: Guilherme B.Lourenço e Marcelo Mendes, do Laboratório de Biologia; e Adriano Reder de Carvalho, chefe do Laboratório de Biologia do IF Sudeste MG, campus Juiz de Fora. “Eu acho que é muito interessante de se pensar a arte e a ciência, porque mostra o imbricamento cultural que há entre essas duas áreas. A gente acha que estão uma longe da outra, mas como processos criativos elas estão muito perto”, diz o professor, em entrevista ao Boletim da SBF

O interesse de Marlon no tema começou a nascer em 2010, quando fez dissertação de mestrado sobre o pintor holandês Jhohannes Vermeer (1632 – 1675), que pintou o famoso quadro “Moça com o Brinco de Pérola”, e que o levou a conhecer o livro “A Arte de Descrever – A Arte Holandesa no Século XVII” (Edusp), de Svetlana Alpers.

Marlon buscou correlacionar a pintura descritiva e realista dos pintores holandesas daquela época, em uma cultura de influência protestante, que busca retratar a vida como ela se apresenta aos olhos, com o florescimento das lentes usadas em microscópios, que tem na figura de Antoni van Leeuwenhoek um de seus maiores artesões. Sua importância para a popularização do aparelho é tão grande que a Holanda comemora em 2023 os 300 anos do artesão.

“Leeuwenhoek não era um estudioso para os padrões da época, era um curioso com grande habilidade de construir lentes. E ele foi descoberto pela ciência”, explica Marlon, que lembra que a paternidade sobre a invenção do microscópio é polêmica até os dias de hoje. O que se sabe é que Leeuwenhoek era o mais habilidoso e produtivo artesão especializado nessas lentes, que motivou o médico e fisiologista Reinier de Graaf  (1641-1673) enviar uma carta para a Royal Society, na Inglaterra, relatando os avanços do holandês na microscopia. Robert Hooke (1635-1703), que já havia publicado o livro “Micrographia”, em 1665, um dos primeiros livros com representações de imagens microscópicas, ficou tão fascinado com a carta de Graaf, que pediu até uma visita de uma comitiva a Leeuwenhoek.

Além da influência mútua entre a arte descritiva e realista dos pintores holandeses da época e a busca da ciência por desvendar um novo mundo microscópico, Marlon parece ver um caminho de mão dupla, no qual a ciência influencia a arte, especialmente no quadro “A view of Delft” (1652), de Carel Fabritius (1622 – 1654). Nessa pintura, é como se a realidade fosse traduzida pelas lentes do tipo “olho de peixe”. Delft é também a cidade de Leeuwenhoek, o que faz dessa pintura ainda mais emblemática. Na mesma época, experiências também são realizadas com a câmera escura, precursora das máquinas fotográficas.

O artigo “O olhar acurado e a descoberta de um ‘novo mundo’ a partir do microscópio” também traz um passo-a-passo para que o professor possa construir dois modelos de microscópio em sala de aula. Marlon explica que muitas escolas não possuem o equipamento, que pode ser construído de uma forma simples e barata. O autor, que é professor do Ensino Básico e da Licenciatura em Física e do Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física, realiza essa atividade com seus alunos, para que vislumbrem esse mundo desconhecido.

Microscópio de Lente Única Artesanal (Crédito: Revista Física na Escola)

“O professor está empenhado em ensinar a disciplina, mas por vezes falta material nas escolas. E fazer o microscópio é dar oportunidade aos alunos em olhar o mundo que não se pode ver a olho nu, é a descoberta de um novo mundo. Guardada as proporções, as reações dos alunos são muito semelhantes com os dos europeus naquela época. Quando olham no microscópio e vêem a parede celular, eles ficam admirados.”

Marlon acredita que hoje em dia há preocupação no ensino de ciência em se buscar aproximações com a arte. Para ele, a cultura tem papel extremamente importante, lembrando que para alguns autores, a descoberta de crateras e montanhas na Lua feita por Galileu Galiei (1564 – 1642) quatro meses após Thomas Harriot (1560 – 1621) em 1609 é atribuído à arte na qual o italiano estava imerso. “Harriot viu manchas na Lua, mas Galileu viu crateras e montanhas. O Galileu estava imerso no Renascimento Italiano, provavelmente tinha questões de pintura e representação inseridas no seu dia a dia, diferente dos ingleses”, diz Marlon.

E, sua busca, é também desmitificar a imagem da ciência e do cientista, que por muitas vezes é romanceada, baseada em descobertas ao acaso e em gênios isolados. “Talvez hoje em dia esteja se discutindo mais na área de ensino essas questões, acerca da natureza da ciência. E muitas vezes a gente percebe que quando aplicamos testes para professores e alunos existem muitas visões distorcidas sobre o trabalho científico. E, talvez, uma delas seja a questão da criatividade em ciência, do quanto ela está inserida em determinada cultura.”

(Colaborou Roger Marzochi)