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Autoras: Carolina Brito (UFRGS), Débora Peres Menezes (UFSC), Celia Anteneodo (PUC-Rio)

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que é uma das agências brasileiras de fomento à pesquisa, outorga bolsas de produtividade em pesquisa (PQ) a pesquisadores afiliados às instituições brasileiras. Tais bolsas são destinadas a pesquisadores de destaque em suas áreas de atuação e cujo impacto é avaliado pelo Comitê Assessor (CA) da respectiva área e medido por meio de diversos critérios como, por exemplo, número de artigos publicados em periódicos indexados, fator de impacto e formação de recursos humanos. Possuir esta bolsa se tornou relevante não apenas pela verba extra que ela implica, mas também porque é um reconhecimento do impacto da produção científica da/o bolsista. Portanto, a bolsa PQ é usada como marcador do reconhecimento da/o pesquisador/a pela comunidade científica e, como tal, sua distribuição entre diferentes grupos se torna uma medida para quantificar a equidade dentro da comunidade científica no Brasil. 

Fenômenos bem documentados, como os chamados “efeito Tesoura” [1] (crescente predominância de um grupo sobre outro ao longo da carreira), “labirinto de cristal” (conjunto de obstáculos enfrentados por um grupo no decorrer da formação e atividade profissional, forma de exclusão horizontal) [2] e “teto de vidro” (obstáculos para aceder a lugares de prestígio e poder, provocando exclusão vertical) [2], são manifestações da desigualdade à medida em que se avança na carreira. Estes fenômenos ocorrem não somente com relação a gênero, mas também com relação a outros marcadores, como geográficos [3] e de raça [4,5], porém menos estudados. No caso do gênero, o desbalanço ocorre em quase todas as carreiras e países investigados [6-8]. Apesar de que diversos esforços têm levado a melhorias, o avanço é lento. Um relatório deste ano [8] mostra que, ao ritmo atual, levaria 132 anos para atingir a paridade. 

Neste texto, apresentamos a distribuição de bolsas PQ na área de física de 2000 até 2021, por um lado separadas por sexo, e por outro por região geográfica. Todos os níveis de bolsa PQ foram agrupados. Para cada ano, discriminamos as informações sobre a distribuição de bolsas em termos de sexo, Fig.1, e região geográfica onde trabalha o bolsista, Fig. 2.  Para saber se a distribuição de bolsas é compatível com o tamanho da comunidade de física no que diz respeito ao sexo e à localização geográfica dos físicos, os números de bolsas PQ foram comparados com os de associados à Sociedade Brasileira de Física (SBF). Concentramo-nos apenas nos sócios efetivos adimplentes. Esta escolha foi realizada porque os sócios efetivos são doutores e apenas estes podem pleitear uma bolsa PQ. Além disso, excluímos da análise os bolsistas PQ da Astronomia, pois a maioria dos astrônomos são associados à Sociedade Brasileira de Astronomia (SAB) e não à SBF. Contudo, a exclusão das bolsas PQ de astronomia praticamente não altera os números relativos e certamente não muda significativamente as conclusões. 

A Figura 1 mostra, na subfigura da esquerda, o percentual de bolsas PQ da física concedidas ao sexo feminino (F) em vermelho, e o percentual de associadas à SBF em preto. Do lado direito, mostramos as correspondentes curvas para o sexo masculino (M), mesmo sendo complementares. 

Figura 1: Círculos em vermelho representam o percentual de bolsistas PQ e diamantes em preto o percentual de associadas/os à SBF. A subfigura à esquerda corresponde às bolsistas e associadas do sexo feminino (F) e a subfigura à direita ao masculino (M).

Os dados apontam para uma estabilidade no percentual de bolsas PQ ao longo das duas décadas analisadas, em torno de 12% de bolsas distribuídas às mulheres. É importante destacar que o percentual de mulheres bolsistas é praticamente metade do percentual de sócias efetivas da SBF.

Com relacao à distribuicao geográfica dos bolsistas, a análise foi feita sem distinção de sexo. A Figura 2 mostra o percentual de bolsistas PQ (círculos cheios) em cada região do Brasil, especificada na parte superior de cada sub figura, comparado ao percentual de associados à SBF na respectiva região (símbolos ocos). A característica mais notável é que, para a região Sudeste, os percentuais são os maiores, em torno de 2/3 da comunidade, dado que esta região engloba os estados mais populosos do Brasil (SP, MG e RJ). Entretanto, as porcentagens de bolsistas e afiliados da SBF correspondentes à região Sudeste são semelhantes, apresentando uma leve queda no percentual de bolsistas ao longo dos anos, compensado pelo aumento observado nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Norte.  Para a região Sul, o percentual de bolsistas PQ é sistematicamente maior que o percentual de filiados à SBF,  e ambos tendem a decrescer com o tempo depois de 2005, enquanto para a região Norte essas relações são  invertidas, ou seja o percentual de bolsistas é menor que o percentual de sócios e ambos tendem a aumentar levemente com o decorrer dos anos. Para as demais regiões, os percentuais de bolsistas e de filiados à SBF não apresentam uma discrepância  sistemática, variando em torno de valores próximos.

Figura 2: Percentual de bolsistas PQ (círculos cheios) e percentual de associadas/os à SBF (círculos ocos). As diferentes cores correspondem a diferentes regiões, conforme escrito em cima de cada sub figura. Note a escala diferente para a região Sudeste.

Em trabalhos anteriores [9-13], tem sido apontada a situação desigual na distribuição de bolsas PQ em termos de sexo, sendo claramente o percentual de mulheres com bolsa PQ muito inferior (quase metade) ao tamanho relativo da comunidade que elas representam.  As nossas análises colocam em evidência uma estabilidade indesejável dessa situação desigual, ao longo das duas décadas analisadas, em que o percentual de mulheres com bolsa PQ tem se mantido praticamente constante.  Além disso, lembremos que estudos anteriores mostram que, na área de física, a proporção de mulheres com bolsa nível PQ2 é muito maior do que com bolsa PQ1A (efeito tesoura) [1,12].

Em termos da distribuição geográfica, a situação tem maior equidade, embora ainda apresente algumas discrepâncias, apontadas em linhas acima.

A distribuição desigual de bolsas PQ é um sintoma e não a causa do problema da desigualdade de gênero na ciência. Isto é possivelmente reflexo de um conjunto de problemas que as mulheres enfrentam ao longo da carreira, tais como estereótipos de gênero, falta de representatividade em eventos científicos, excessivo gasto de tempo em tarefas não remuneradas, dentre tantos outros exemplos, que são temas de intensas pesquisas e geram uma série de recomendações importantes [14].  No entanto, no que concerne especificamente à distribuição das bolsas PQ, faremos abaixo algumas considerações. 

Este quadro de disparidade na distribuição de bolsas PQ não é exclusividade da física. No entanto, ter uma comunidade que reconhece a importância da diversidade na ciência é um passo essencial para atingir maior equidade [14]. Neste sentido, a SBF tem expressado preocupação na questão de equidade de gênero ao criar, em 2003, uma Comissão de Gênero, que em 2010 se transformou em Grupo de Trabalho sobre Questões de Gênero e em 2021 mudou para Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão (JEDI) para agrupar de maneira transversal a questão de raça e de grupos sub representados. Após estes 20 anos de atuação, a sub-representação das mulheres entre as contempladas para as bolsas PQ nos faz questionar: por que ainda não alcançamos maior equidade de gênero se isto parece ser o desejo da comunidade de físicas/os? 

Uma hipótese para entender o cenário seria um possível viés implícito do Comitê Assessor de Física e Astronomia (CA-FA) no CNPq, que recomenda a distribuição das bolsas PQ. Na referência [10], os autores avaliaram o perfil dos bolsistas CNPq e mostraram que em 2005 as mulheres tinham quase o dobro de publicações no nível PQ-2 do que os homens, indicando um represamento na ascensão das mulheres. Após apresentação destes dados, o problema foi corrigido e em 2010 não ocorria mais esta discrepância. Um estudo similar do perfil de pesquisadores PQ foi mais tarde repetido e realizado para o ano de 2016 também [13] e não foi identificado um viés significativo em números de publicações, orientações, fator H, entre pesquisadores de diferentes sexos. Portanto, a raiz do problema não parece estar na avaliação em si.

Estes estudos apontam a necessidade de  analisar e quantificar o nível de diversidade na comunidade com regularidade, pois estes dados permitem melhor conduzir as políticas de distribuição de bolsas. Isto indica a necessidade de aprofundar a caracterização dos perfis de pesquisadores no que concerne a outros marcadores como  raça, gênero e distribuição geográfica, marcadores para os quais temos muito menos estatísticas do que no caso de sexo. 

Metodologia: Os dados sobre as bolsas PQ da física foram solicitados via Portal da Transparência (https://www.portaltransparencia.gov.br/). Os dados anuais de bolsas PQ da área de física e astronomia foram disponibilizados desde 2000 até 2021. São dados anônimos com as seguintes informações para cada bolsista: i) ano referência, ii) sexo, iii) nível da bolsa PQ (1A, 1B, 1C, 1D, 1E, 2, SR), iv) área do conhecimento (física ou astronomia), v) instituição, vi) UF, vii) região, viii) título do projeto. 

Os dados da SBF foram levantados pelo funcionário da SBF Fernando Braga. Os dados são anônimos e discriminados por região geográfica (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste, Sul, Estrangeiros) e sexo (masculino, feminino, outro). Nestes anos analisados não houve sócios com declaração de sexo “outro”. Em função do baixo número de estrangeiros, estes foram desconsiderados nesta análise. 

Referências

[1] D.P. Menezes, C. Brito,  C. Anteneodo, Women in physics: Scissors effect from the Brazilian Olympiad of physics to professional life, arXiv:1901.05536, e Sci. Am. Brasil, 76, 2017.

[2] B. S. Lima, O labirinto de cristal: as trajetórias das cientistas na Física, Rev. Estud. Fem. 21 (2013), https://doi.org/10.1590/S0104-026X2013000300007 

[3] N. C. Ferrari, R. Martell, D. H. Okido, G. Romanzini, V. Magnan, M. C. Barbosa, and C. Brito, Geographic and gender diversity in the Brazilian academy of sciences, Anais da Academia Brasileira de Ciências 90, 2543 (2018).

[4] V. Morcelle, G. Freitas, and Z. M. C Ludwig, From school to university: An overview on STEM (Science, Technology, Engineering and Mathematics) gender in Brazil, Quarks: Braz. Electronic J. Phys. Chem. Mater. Sci. 1, 1 (2019). 

[5] C. Anteneodo, C. Brito, A. Alves-Brito, S.S. Alexandre, B. Nattrodt d’Avila, D. Peres Menezes. Brazilian physicists community diversity, equity, and inclusion: A first diagnostic, Physical Review Physics Education Research 16, 010136 (2020).

[6] European Commission, Directorate-General for Research and Innovation, Science policies in the European Union : Promoting excellence through mainstreaming gender equality: A report from the ETAN expert working group on women and science, Publications Office, 2000. https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/4d456ad0-abb8-41a2-9d21-dbd5381f1f4c/language-en, visitado em 15-11-2022.

[7] Report: Gender in the Global Research Landscape,   Elsevier (2017), https://www.elsevier.com/__data/assets/pdf_file/0003/1083945/Elsevier-gender-report-2017.pdf, visitado em 15/11/2022.

[8]   Global Gender Gap Report 2022, INSIGHT REPORT JULY 2022, World Economic Forum. https://reliefweb.int/attachments/206d519d-beaa-3790-8d4d-0bc67552d0fc/WEF_GGGR_2020.pdf 

[9] P.  Duarte, M.C.B. Barbosa,  J.J. Arenzon, Produtividade em Pesquisa – CNPq, Física 2005- 2010: uma análise comparativa, Instituto de Física – UFRGS.

[10] J.J. Arenzon, P. Duarte, S. Cavalcanti, M.C. Barbosa, Women and physics in Brazil: Publications, citations and H index, AIP Conf. Proc. 1517,78 (2013); http://dx.doi.org/10.1063/1.4794228

[11] E.B. Saitovitch, B.S. Lima, M.C. Barbosa, Mulheres na Física: uma análise quantitativa em Mulheres na Física (2015). http://www1.fisica.org.br/gt-genero/images/arquivos/Apresentacoes_e_Textos/livro-mulheres.pdf

[12] G. Bezerra, M. Barbosa, Mulheres na física no Brasil: Contribuição de alta relevância, mas, por vezes, ainda invisível, em SBF: 50 Anos, pp. 130–133, 2017, http://www.sbfisica.org.br/arquivos/SBF-50-anos.pdf 

[13] D.P. Menezes, C. Brito, K. Buss,  C. Anteneodo, Bolsistas de produtividade em pesquisa em Física e Astronomia: análise quantitativa da produtividade científica de homens e mulheres, http://www1.fisica.org.br/gt-genero/images/arquivos/Apresentacoes_e_Textos/dados_CNPq_2016_vf.pdf visitado em 15/11/2022.

 [14]  Isabelle Régner, Catherine Thinus-Blanc, Agnès Netter, Toni Schmader Pascal Huguet, Committees with implicit biases promote fewer women when they do not believe gender bias existsNature Human Behaviour, v 3, pages 1171–1179 (2019).

Sobre as autoras:

Celia Anteneodo é professora do Departamento de Física da PUC-Rio, onde desenvolve pesquisas sobre fenômenos de não equilíbrio, não lineares e propriedades coletivas emergentes em sistemas complexos, como os biológicos e sociais. É co-editora de Europhysics Letters e membro do corpo editorial de Physical Review E. Participou ativamente do grupo de trabalho sobre questões de gênero da SBF e continua se dedicando a ações para propiciar maior diversidade e inclusão.
Débora Peres Menezes é professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina, atual Presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF) e membra da Academia Brasileira de Ciências. Tem experiência na área de física, com ênfase em física nuclear e de hádrons, teoria de grupos e astrofísica nuclear. Dedica-se ativamente à divulgação científica e coordena o projeto Mulheres na Ciência, produzindo materiais para diversas mídias sociais, incluindo um canal no YouTube e seu parceiro no TikTok (links).
Carolina Brito é professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É pesquisadora do CNPq e suas principais áreas de pesquisa são propriedades de molhabilidade de superfícies e sistemas complexos, como por exemplo materiais amorfos e sistemas com dinâmicas lentas. É coordenadora do Programa de Extensão “Meninas na Ciência” e apresentadora e produtora do podcast de divulgação científica “Fronteiras da Ciência”.