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Por Flávia Natércia

Gabriela Barreto Lemos, 40 anos, está prestes a ter seu primeiro filho. Ela é professora Adjunta no Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IF/UFRJ) e se define como uma mulher branca e mineira, cujos pais são professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Então, eu sempre tive muita inserção na universidade, desde criança. Até a creche ficava na UFMG!”, conta Gabriela. Em seu  laboratório, ela se dedica a estudar as propriedades quânticas da luz, visando tanto efeitos fundamentais, tentando entender fenômenos do mundo subatômico, quanto a criação de ferramentas que podem ajudar a fazer metrologia, tecnologias de sensoriamento, melhores câmeras, melhores computadores, internet quântica ou criptografia quântica. É por aí que, muitas vezes, ela consegue financiamento, mas não é alguém que pensa muito nas aplicações, que aparecem quando são necessárias. “Procuro pensar nas minhas inquietações, que na Física se relacionam com o que acontece no mundo subatômico e é difícil entender”, relata Gabriela. 

Além da pesquisa, ela gosta muito de lecionar e é muito ligada às questões do ensino, mas ainda não tem uma disciplina fixa. Gabriela assumiu seu cargo como professora na UFRJ em 2020, em plena pandemia de Covid-19, e desde então já deu cursos para calouros de Física e Engenharia. E, no último ano e meio, deu aulas no curso de Licenciatura em Física com grande prazer. “Eu fiz com eles oficinas de ensino em que a gente trabalhou com o uso de tecnologias como computadores e celulares no ensino, para que os futuros professores possam explorar as ferramentas que existem”, conta Gabriela. Ela gosta muito também de música e de dança, que são seus hobbies. 

A professora diz que não é claro para ela até hoje por que decidiu seguir uma carreira em Física. Seus pais atuam em outros campos do conhecimento, mas são pesquisadores, então Gabriela sempre soube que queria ser professora universitária. Sua curiosidade sempre foi aguçada para questões fundamentais, filosóficas, cosmológicas. E ela se saía muito bem nas disciplinas de Matemática, Física e Química. Então chegou a considerar se graduar em Química. Também pensou em fazer Medicina, porque sua mãe é médica. Mas ela detestava Biologia, porque exigia decorar muitas coisas, enquanto na Física ela conseguia entender. 

Além disso, Gabriela teve um bom professor de Física no Ensino Médio, que fazia experimentos e “coisas bem legais”. “Escolhi na hora do vestibular mesmo. Eu fiquei entre Psicologia, Medicina, Filosofia, Física ou Música”, relata a professora. Mas seus pais achavam que a Física, dentre todas essas possibilidades, era a que abria mais portas, porque é um campo com muitas direções que podem ser seguidas. “E acabei me dando bem, gostei”.

Gabriela recebeu estímulo para ingressar e seguir na carreira de seus pais e de sua família de modo geral, que preza muito o estudo. “Minhas avós não estudaram, mas para elas o estudo era a coisa mais importante do mundo, justamente porque as duas queriam ter seguido uma carreira e não puderam. Isso me ajudou muito ao longo da minha carreira, antes e depois de entrar na faculdade”, conta a pesquisadora. Seus pais sempre a apoiaram quando ela decidiu fazer mestrado, doutorado e pós-doutorado, sem cobrar que começasse a trabalhar no lugar de estudar. 

Além disso, na universidade ela também contou com o apoio da professora Maria Carolina Nemes, sua orientadora na iniciação científica e no mestrado. “Ela me deu chacoalhadas quando foi preciso, também me apoiou quando foi preciso, me explicou muito sobre como funciona o mundo da Física, tanto por meio de palavras quanto por meio de atitudes, e me colocou em situações nas quais eu tive de me virar”, lembra Gabriela. E, por fim, a pesquisadora destaca o apoio de sua amiga Nadja Kolb Bernardes, com quem cursou o Ensino Médio, cujo pai é físico. “Nós somos amigas e fazemos coisas juntas até hoje. Mesmo agora que vivemos em cidades diferentes continuamos muito próximas e somos muito honestas uma com a outra, o que me ajuda bastante”, conta Gabriela. 

A pesquisadora conta ainda que demorou a se perceber como uma mulher na Física, o que aconteceu somente em 2014, quando foi fazer seu pós-doutorado na Áustria. Ela acredita que isso dificultou a percepção de diversas situações que vivenciou, pois não identificava sua posição dentro desse universo, encarando as dificuldades por que passou como questões pessoais, e não sociais ou políticas. Quando ela entrou na faculdade, os meninos eram muito machistas, faziam piadinhas misóginas e homofóbicas. “Diziam que as mulheres na Física são todas feias, por exemplo. Isso sempre me incomodou, mas demorei a entender por quê”, relata Gabriela. 

A própria Maria Carolina Nemes tratou desse assunto com Gabriela, mas ela não estava pronta para entender a si mesma e a comunidade de físicos dessa forma. Sua orientadora lhe avisou que, quando ela fosse estudar no exterior, isso tudo ficaria muito mais explícito, porque no Brasil as violências são veladas, disfarçadas, mascaradas, e somente há pouco tempo passaram a ser denunciadas. E, de fato, quando Gabriela foi fazer pós-doutorado na Áustria, percebeu que tanto a discriminação de gênero quanto a racial lá eram muito mais escancaradas. 

Ela chegou ao laboratório estrangeiro ao mesmo tempo em que um homem branco francês e um homem negro estadunidense. Enquanto o francês não esbarrou em obstáculos, o pesquisador negro e ela sentiram na pele a discriminação. “Eu tive dificuldade para encontrar apartamento e ficava me perguntando o porquê até que um homem verbalizou”. Uma mulher brasileira e solteira, mesmo portando uma carta do chefe na universidade, um cidadão muito conhecido de uma instituição muito respeitada, não podia estar lá para trabalhar na universidade: ela devia ser uma prostituta. 

No laboratório na Áustria, trabalhavam trinta homens e somente três mulheres, que ficavam isoladas, ninguém as convidava para as confraternizações, nas quais se estabeleciam muitas das colaborações em pesquisa. E havia as brincadeiras sem graça, os cochichos e as risadas que se faziam quando elas chegavam. “Então vivi situações muito violentas lá”, conta a pesquisadora. “Mas, no Brasil, eu não percebia isso assim claramente, porque aqui ocorre a mesma violência, só que é colocada de outro jeito. Somente lá eu fui entender o que minha orientadora tinha falado”, completa. 

Depois de se descobrir como uma mulher na ciência, Gabriela também passou a se engajar nessa temática, participando de eventos e criando projetos para lidar com ela. Primeiramente, ela se candidatou, juntamente com a amiga Nadja, a uma vaga no Grupo de Trabalho sobre Questões de Gênero da Sociedade Brasileira de Física (SBF), criado em 2015 para substituir a Comissão de Relações de Gênero. Nessa época, havia também um Grupo de Trabalho de Equidade Racial, que não dialogava muito com o grupo de gênero. Mas o Grupo de Trabalho sobre as Questões de Gênero não via sentido em pensar em gênero sem pensar em raça, classe e sexualidade. 

“Então nós fizemos um grande esforço para juntar nossos esforços”, conta Gabriela. E, pouco tempo depois, a SBF decidiu acabar com os grupos de trabalho. “Então sentamos juntas e discutimos como poderíamos não virar só uma comissão de gênero. E foi aí que a professora Katemari Rosa, da Universidade Federal da Bahia, propôs criar uma comissão de justiça, equidade, diversidade e inclusão e fizemos um estatuto que deixa claro que essas são nossas missões”, conta Gabriela. “Nossa percepção é a de que as questões de raça e classe são mais fortes dentro da Física do que a de gênero”.

Assim, foi criada a Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão, o que em si Gabriela considera uma conquista, trazendo essas questões para dentro da SBF. Dentre as iniciativas propostas pela JEDI, está o recadastramento dos sócios da instituição, com a inclusão de uma autodeclaração de raça, cor, gênero e orientação sexual para que se faça um mapeamento mais claro do panorama atual em termos de representatividade. E o grupo criou um guia para a organização de eventos visando torná-los mais diversos e inclusivos, orientando sobre como montar as mesas, selecionar trabalhos e convidados e lidar com as questões de discriminação e assédio nas conferências. “Agora está escrito que na SBF tem que ter x% de pessoas negras como convidadas, x% de mulheres como convidadas, tem que ter uma mesa sobre diversidade. Se essas determinações são cumpridas é outra questão, mas a gente tem um documento aprovado pela diretoria”, conta Gabriela.

Outra questão abordada pela comissão, em parceria com o grupo Parent in Science, consiste na licença-maternidade, que muitas vezes acaba prejudicando a progressão na carreira das mulheres. E a comissão está organizando eventos para meninas e mulheres na ciência, para que elas possam se conhecer, formar redes e também conhecer o trabalho das mulheres cientistas. Por fim, a partir de uma proposta de Márcia Barbosa, professora titular do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a JEDI está criando um programa de mentoria a fim de que as estudantes de Física sejam preparadas para lidar melhor com os obstáculos que surgem ao longo de suas trajetórias e se sentir mais seguras.

A uma estudante que está ingressando agora na Física, Gabriela diria: “Vá em frente, que atrás vem gente!”. Ela aconselha as meninas a se organizar, formando coletivos capazes de fazer com que as questões que as afetam sejam discutidas mais amplamente, envolvendo também os estudantes e os professores do gênero masculino. Uma sugestão que ela dá é que, no início dos cursos, com a participação dos docentes, crie-se um código de conduta para todos, pois é preciso ir além da questão da representatividade, que melhora, mas não resolve os problemas que continuam se colocando no caminho das meninas e mulheres que fazem Física.