Uma equipe internacional de físicos, incluindo o brasileiro Miguel Quartin, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), propôs um novo método para medir a curvatura espacial do Universo no artigo Cosmological Spatial Curvature with the Alcock-Paczyński Effect, publicado em 13 de março na Physical Review Letters (PRL). A proposta se destaca por oferecer uma abordagem mais robusta e menos dependente de modelos cosmológicos, respondendo a uma das perguntas mais antigas da cosmologia: qual é a forma do Universo?
A curvatura espacial do Universo é um parâmetro fundamental previsto pela Teoria da Relatividade Geral. Ela pode ser positiva (como uma esfera), negativa (como uma sela de cavalo) ou nula (plana como uma folha de papel). Embora as medições atuais sugiram que o Universo é quase plano, os dados ainda comportam uma pequena margem de curvatura — e essa incerteza pode esconder implicações filosóficas e físicas profundas, como o fato de vivermos em um Universo finito.

Até hoje, as principais técnicas para estimar a curvatura se apoiam em “velas padrão”, como supernovas do tipo Ia, e em “réguas cósmicas”, como as oscilações acústicas de bárions (BAO). No entanto, esses métodos estão sujeitos a incertezas relacionadas à calibração dos objetos usados, o que pode enviesar as conclusões. “A maioria das medidas que fazemos na cosmologia são indiretas. Você só interpreta o que vê assumindo um modelo teórico por trás”, diz Quartin em entrevista ao Boletim SBF.
O BAO é como o “eco” do Universo Primordial, no qual a matéria quente formada por prótons e nêutrons criava uma densa cortina que impedia a luz de sair, mas que após a sua liberação, 380 mil anos após o Big Bang, deixou marcas na matéria. Ao mesmo tempo, houve também a liberação de fótons antes aprisionados na “sopa primordial”, que viajam até hoje no Universo, e são captadas em forma de micro-ondas, um registro “paleontolítico” da criação chamada de radiação cósmica de fundo.
Uma maneira poética didática de entender as oscilações acústicas de bárions e o feito da radiação cósmica de fundo foi oferecida pelo físico Luciano Barosi, brasileiro que integra o projeto BINGO, um rádiotelescópio que está sendo construído no sertão da Paraíba: imagine várias pessoas em pé na praia, dentro do mar. Uma onda se forma ao longe e passa por cada uma delas, carregando um pouco da “informação” de cada corpo.
Quando finalmente essa onda quebra na areia, ela deixa impressa uma memória coletiva daquela travessia. No Universo Primordial, era assim: ondas sonoras se propagavam por um plasma quente de partículas, e, quando o Universo esfriou o suficiente, 380 mil anos após o Big Bang, essas ondas pararam de viajar, mas deixaram gravado, na distribuição da matéria e da luz, um eco permanente daquela movimentação inicial. É esse “rastro” que os cientistas leem hoje, tanto na radiação cósmica de fundo quanto na distribuição das galáxias, para investigar a geometria do Universo.
Em expansão – Foi Edwin Hubble que revelou, nos anos 1920, que as galáxias estavam se afastando. Desde então, a ideia de um Universo em expansão foi se aprimorando na ciência e passou a ser medida com base na luz de supernovas (as chamadas velas-padrão). A partir do fim dos anos 1990, esse método sugeriu que a expansão era acelerada, hipótese que se confirmou uma década depois e ganhou reforço com os dados dos satélites WMAP e Planck, que consolidaram o modelo padrão ΛCDM. Mas, nos últimos 15 anos, tensões entre diferentes medições, especialmente da constante de Hubble, vêm desafiando esse modelo e abrindo espaço para abordagens mais independentes, como a recém-proposta por Miguel Quartin e colaboradores da Itália e da Alemanha. “Hoje temos uma diferença de cinco sigma entre o valor da constante medido localmente e aquele inferido a partir da radiação cósmica de fundo. Isso é um sinal forte de que algo pode estar errado no nosso modelo”, alerta Quartin.
Um novo olhar para o Cosmos – A técnica desenvolvida pela equipe de Quartin combina dois efeitos observacionais: o efeito Alcock-Paczyński e as distorções no espaço de redshift. O primeiro explora como estruturas cosmológicas presumidamente esféricas podem parecer distorcidas se o modelo usado para medir o espaço estiver errado. “Se você parte de uma esfera e enxerga um elipsoide, tem algo de errado com o modelo que está assumindo. Quando o modelo for correto, a esfera se reconstrói”, explica.
Já as distorções de redshift derivam das velocidades peculiares das galáxias, ou seja, dos seus movimentos além da expansão cósmica. Essas perturbações são geralmente tratadas como ruído, mas, quando bem interpretadas, tornam-se ferramentas preciosas para medir distâncias e a taxa de expansão do universo em diferentes épocas. “Ela surge das chamadas distorções no espaço de redshift, o segundo pilar da técnica. Para entender esse efeito, é preciso lembrar que o Universo está em expansão: as galáxias, em média, estão se afastando de nós, o que provoca o fenômeno conhecido como redshift, ou desvio para o vermelho, uma mudança na frequência da luz semelhante ao efeito Doppler que percebemos quando uma ambulância se afasta e o som de sua sirene se torna mais grave”, explica Quartin.
“Só que o Universo real não é feito apenas dessa expansão suave e uniforme. Tudo está em movimento: a Terra gira em torno do Sol, o Sol gira em torno do centro da Via Láctea, e a própria galáxia se desloca no grupo local. Além disso, regiões do Universo com mais matéria tendem a atrair ainda mais matéria. Onde há um leve excesso de gás e galáxias, há maior chance de formação de novas estruturas. E onde há pouco, tende a haver ainda menos. Esse processo leva à formação de grandes aglomerações cósmicas: galáxias, estrelas, planetas, inclusive nós mesmos”, continua o cientista.
“Essas regiões mais densas, ao colapsarem gravitacionalmente, geram movimentos de queda em direção ao centro de massa, o que cria um padrão de colapso aproximadamente esférico em diversas direções do céu. Quando observamos esses colapsos, percebemos distorções adicionais no redshift das galáxias — distorções que se sobrepõem ao desvio causado pela expansão do Universo.”
É a combinação desse colapso esférico, que gera uma estrutura de referência, com o efeito Alcock-Paczyński, que permite aos pesquisadores reconstruir a geometria do espaço e inferir sua curvatura. O método é poderoso porque permite comparar a forma real com a forma observada e, assim, testar diretamente qual modelo cosmológico produz uma esfera verdadeira.
Ao juntar essas duas abordagens, os pesquisadores conseguem obter simultaneamente a distância adimensional e o parâmetro de Hubble sem depender da física do Universo Primordial, como o chamado horizonte acústico, que influencia outros métodos. Isso torna a proposta mais robusta diante das incertezas sobre as condições iniciais do Cosmos. “Nosso método é mais robusto porque não depende de suposições específicas sobre o Universo Primordial, mas o custo é uma leve perda de precisão. É por isso que grandes levantamentos de dados são essenciais”, destaca Quartin.
Perspectivas – É aí que entram os novos levantamentos astronômicos que estão revolucionando a cosmologia observacional. O DESI (Dark Energy Spectroscopic Instrument) é um projeto norte-americano instalado no Observatório Kitt Peak, no Arizona. Seu objetivo é mapear a posição e o redshift de dezenas de milhões de galáxias, criando o maior mapa 3D do Universo já feito. Os primeiros catálogos de dados já foram divulgados.
Já o Euclid, liderado pela Agência Espacial Europeia (ESA), é um satélite lançado em julho de 2023 com a missão de investigar a energia escura e a geometria do Universo a partir do espaço. Seus dados cobrirão uma faixa ainda maior do céu, com precisão inédita.
Segundo Quartin, a combinação dos dados do DESI e do Euclid permitirá aplicar o novo método com muito mais eficácia. “Enquanto o Sloan Digital Sky Survey (SDSS) conseguia medir em duas ou três épocas diferentes do Universo, agora teremos dados em 10 a 20 diferentes janelas cósmicas. Isso vai permitir uma precisão sem precedentes.”
As simulações mostram que será possível restringir a curvatura espacial com uma incerteza inferior a 0,06 no parâmetro Ωₖ — um salto notável frente aos métodos anteriores. Mas talvez mais importante do que os números seja a abertura que essa abordagem traz para pensar novas cosmologias. Em um momento de tensões com o modelo padrão ΛCDM, alternativas independentes de modelo se tornam ainda mais valiosas.
“Pode ser que estejamos à beira de uma mudança de paradigma. Nosso método ajuda justamente nesse momento, oferecendo uma forma mais neutra de medir o Universo sem partir de suposições que talvez precisem ser revistas”, conclui Quartin.
O artigo completo está disponível na Physical Review Letters e a entrevista com o pesquisador pode ser assistida na íntegra também no canal da Sociedade Brasileira de Física no YouTube. Miguel Quartin ainda era professor da UFRJ durante a produção e publicação deste artigo.
Veja a entrevista na íntegra
Veja a entrevista com o físico Miguel Quartin, do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), realizada pelo jornalista Roger Marzochi. Se preferir, acesse nosso canal no Youtube.
(Colaborou Roger Marzochi)