Por Frederico S. M. de Carvalho

Com curadoria da CAPEF

Referência: OSTERMANN, Fernanda; REZENDE, Flávia. BNCC, Reforma do Ensino Médio e BNC-Formação: um pacote privatista, utilitarista minimalista que precisa ser revogado, Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 38, n. 3, p. 1381-1387, 2021.

Cerca de quatro anos após a sanção da Reforma do Ensino Médio (REM) (Lei nº 13.415) e de dois anos da instituição da Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação), as pesquisadoras Fernanda Ostermann e Flávia Rezende contextualizaram – e colocaram em discussão – o conjunto de ações assumidas pelos dois documentos e os impactos na educação brasileira.

O editorial elaborado para o Caderno Brasileiro de Ensino de Física (CBEF) conduz os leitores por uma linha do tempo através da política nacional. Acompanhando a trajetória, as autoras descrevem as ideologias que acarretaram a elaboração dos dois textos governamentais e colocam em pauta os impactos gerados pela adoção das diretrizes apontadas por ambos. Assim, Ostermann e Rezende apresentam uma crítica à Reforma do Ensino Médio no Brasil, indicando-a como uma política neoliberal e utilitarista que prioriza a formação profissional em detrimento da formação geral dos estudantes.

Para sustentar seus argumentos, além das próprias análises e observações – construídas ao longo dos anos dedicados à pesquisa em educação –, as autoras recorrem a documentos oficiais e dialogam com a literatura do campo: Aguiar e Tuttman (2021), Frigotto (2021), Freitas (2012), Leher (2021) e Selles (2018) foram os autores escolhidos pelas pesquisadoras. A soma do material apresenta as duas empreitadas do Estado como um retrocesso cultural que empobrece a educação científica e enfraquece a organicidade da Educação Básica. “Tal ressignificação do currículo representa, para os sujeitos, um retrocesso cultural, na medida em que fragmenta e subtrai sua formação geral”, escrevem.

As autoras defendem que as reformas indicadas para o ensino minimizam o papel do Estado e favorecem a formação de força de trabalho, dedicada apenas ao “desenvolvimento do capitalismo na sua etapa de financeirização”. Segundo elas a política adotada foi “guiada pela teoria do capital humano, segundo a qual a escola forma recursos humanos e não cidadãos, o que significa submissão da educação ao mundo produtivo”. Além disso, a não obrigatoriedade de apresentação de todos os cinco itinerários oferecidos pelo sistema – quatro voltados às áreas de conhecimento do Ensino Médio e um dedicado à formação técnica e profissional – possibilitaria uma heterogeneidade na formação dos estudantes, indo contra o direito universal à formação básica de mesma qualidade para todos os jovens. 

Com relação à formação de professores, Ostermann e Rezende expõem a simplificação exacerbada das competências necessárias para a prática pedagógica. Conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional são as três dimensões fundamentais de competências exigidas do docente, o que, para elas, apresenta a desconsideração da diversidade de contextos de trabalho e da pluralidade social dos estudantes. Ainda, havendo tamanha flexibilização na escolha dos itinerários formativos pelas escolas, as pesquisadoras indicam a possível restrição ao itinerário técnico profissional, “dada a falta de professores em áreas como Ciências da Natureza”.

Hoje, cerca de dois anos após a publicação do editorial, Ostermann e Rezende consideram que muito do que foi dito comprovou-se, principalmente com relação ao ensino público. “Um dos impactos mais negativos se refere à redução da carga horária de quase todas as disciplinas, incluindo a Física” explicam. “Especificamente em relação aos itinerários formativos, no Rio Grande do Sul, as escolas têm se limitado a ofertar apenas dois itinerários”, exemplificam as autoras do editorial.

As professoras ressaltam que neste período é possível constatar que as condições físicas e técnicas das escolas também não passaram por melhorias, destacando a falta de laboratórios de informática em mais da metade das escolas e a presença de laboratórios de ciências em apenas 22% das instituições. Citando Frigotto, afirmam que, além do “retrocesso cultural”, um grande problema na ressignificação adotada do currículo está na concepção de educação que tira dos jovens ferramentas essenciais de conhecimento que serviriam de auxílio para a formação de sua cidadania política e econômica.

Desta forma, mais que um artigo que contextualiza as mudanças no sistema educacional brasileiro entre os anos 2017 e 2021, o editorial publicado no CBEF foi um manifesto que apresentou como as reformas impostas pelo governo impactariam negativamente na formação de docentes e alunos do Ensino Médio. Assumindo a realidade apresentada na época, as pesquisadoras convocaram a exigência de revogação do pacote de políticas curriculares adotadas e a defesa de uma educação pública de qualidade, “apaixonante” e que fosse composta por um discurso uníssono de pais, professores e estudantes.

E, quem diria, que neste ano, tais desejos começassem a ser atendidos. A pressão popular, juntamente com a troca de governo, proporcionou nova mudança no ensino nacional, anunciada pelo Ministério da Educação (MEC) no início de abril deste ano, com a suspensão do cronograma e implementação do Novo Ensino Médio. E mais recentemente, o encaminhamento ao Congresso Nacional do Projeto de Lei 5230/23, que redefine as diretrizes do Ensino Médio, ato celebrado pelas pesquisadoras.

“A principal mudança da proposta, com a qual concordamos, é a obrigatoriedade de 2400h mínimas dedicadas à formação geral, a principal demanda de estudantes e professores. Para a parte diversificada do currículo restariam 600h”, explicam. De acordo com novo projeto, treze componentes serão obrigatórios para compor as horas de formação geral, dentre eles a disciplina de Física. Outro ponto revisto é a expansão da educação em tempo integral, de acordo com elas, “algo a ser defendido”.

Porém, apesar das boas notícias, as pesquisadoras afirmam que ainda há muito para se lutar. Para elas, a melhoria do ensino de Física e da formação docente não estará garantida enquanto as diretrizes para a formação de professores, aprovadas em 2019, não forem revogadas. “Conforme discutimos no editorial, há um entrelaçamento entre BNCC, REM e BNC-Formação, o que nos leva a defender que não só a REM seja substituída por uma proposta que busque reduzir as desigualdades educacionais, mas que a legislação para a formação de professores seja construída a partir de consensos entre os educadores profissionais, tal como foram as Diretrizes de 2015”, esclarecem.

No entanto, afirmam que as mudanças atuais ainda não serão suficientes para que possamos vislumbrar um grande avanço no sistema educacional do Brasil. As pesquisadoras concluem defendendo que, sem um salário digno, condições adequadas de trabalho e progressão na carreira, ainda há uma longa estrada na caminhada rumo a uma educação pública, gratuita e de qualidade no Brasil.

Referências:

AGUIAR, M. A.; TUTTMAN, M. T. Políticas educacionais no Brasil e a Base Nacional Comum Curricular: disputas de projetos. Em Aberto, Brasília, v. 33, n. 107, p. 69-94, jan./abr. 2020. Disponível em:  <http://emaberto.inep.gov.br/ojs3/index.php/emaberto/article/view/4556>. Acesso em: jul. 2021.

FREITAS, L. C. de. Os reformadores empresariais da Educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, 2012.

FRIGOTTO, G. O “novo ensino médio”: traição à juventude que frequenta a escola pública. Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) | 05 de novembro de 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/11/05/analise-o-novo-ensino-medio-traicao-a-juventude-que-frequenta-a-escola-publica. Acesso em: 05 nov. 2021.

LEHER, R. Apresentação na mesa redonda Legitimação dos saberes e políticas de docência frente aos movimentos neoconservadores e ao retrocesso democrático. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, XIII, 2021. Disponível em: https://youtu.be/tXSVajBhZyE. Acesso em: 01 out. 2021.

OSTERMANN, F.; REZENDE, F. Uma interpretação da educação em ciências no Brasil a partir da perspectiva do currículo como prática cultural. Investigação e Práticas em Educação em Ciências, Matemática e Tecnologia, Vila Real, Portugal, v. 1, n. 1, p. 30-40, 2020.

OSTERMANN, F. Apresentação na mesa redonda Formação docente em tempos de BNCC e das Novas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM ENSINO DE FÍSICA, XVIII, 2020.

SELLES, S.E. A BNCC e a Resolução CNE/CP no 2/2015 para a formação docente: a “carroça na frente dos bois”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 35, n. 2, p. 337-344, 2018.