O falecimento de Ramayana Gazzinelli, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Física, dia 2 de setembro de 2024, causou enorme consternação. Ramayana estava com 91 anos e faleceu no conforto de sua casa, ao lado de seus familiares. Deixou sua esposa Alzira, seus filhos Gustavo, Ricardo, Letícia e Elisa, onze netos e dois bisnetos.
Ramayana Gazzinelli nasceu em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha em Minas Gerais, em 7 de julho de 1933, e mudou-se ainda jovem para Belo Horizonte, onde completou seu curso primário e fez o secundário. Formou-se em engenharia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 1956 e fez especialização em engenharia nuclear em 1957, na mesma universidade. Em 1959, foi para os Estados Unidos, onde fez mestrado e doutorado em física na Universidade Columbia, em Nova York. Para um de nós (AC), comentou algumas vezes sobre as dificuldades que teve ao fazer pós-graduação em uma universidade de elite, como a Columbia, com a sua formação prévia, que só então percebeu o quanto era precária. Teve de se empenhar muito arduamente, o que só foi possível porque contou com o apoio de sua esposa Alzira, que cuidou de todos os outros afazeres e o liberou para dedicação aos estudos. Queria especializar-se em física do estado sólido, cuja pesquisa experimental requeria menos recursos, e para orientador de tese procurou Robert Lee Mieher, jovem físico que retornara recentemente da Alemanha e ingressara na Columbia. Este estava interessado em Ressonância Dupla Eletrônica-Nuclear (ENDOR, na sigla em inglês) e propunha-se a construir um espectrômetro ENDOR superheterodino, que daria mais sensibilidade e resolução à espectroscopia ENDOR, ainda recente. Deu a Ramayana, como parte do projeto de tese, a construção do espectrômetro. A técnica superheterodina era bem estabelecida na transmissão e recepção de ondas de rádio, mas em frequências de micro-ondas, em que se dá a ressonância magnética eletrônica, ela gera instabilidades difíceis de serem controladas. É realmente admirável que Ramayana tenha tido sucesso em construir o espectrômetro, estável o bastante para determinar com ele a estrutura eletrônica de um dado defeito em cristais de fluoreto de lítio (LiF).
Ramayana retornou ao Brasil em 1964 e era o primeiro PhD em Minas Gerais. Mas foi contratado na UFMG como Professor Assistente, pois no sistema universitário brasileiro da época só havia as funções de Professor Catedrático e Professor Assistente, escolhido pelo catedrático da cadeira. A reforma universitária, que visava modernizar universidade, estava em discussão, e Ramayana empenhou-se nela. Foi, talvez, o mais lúcido e articulado defensor da reforma em Minas Gerais.
Mas seu maior empenho foi dedicado a iniciar pesquisa e pós-graduação em física na UFMG. Já havia um departamento de física vinculado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, dedicado apenas ao ensino, pois não havia laboratórios científicos, nem espaço para eles. Por sorte, em 1964, Aluísio Pimenta tornou-se reitor da UFMG e tomou iniciativas importantes na construção do Campus da Pampulha. Mudou também o estatuto da universidade, no qual ficou prevista a construção de institutos centrais para as áreas de ciências exatas e para as ciências biológicas. Em 1967, os alunos de física, matemática e química já estavam tendo aulas em um prédio de ensino para estudantes dessas áreas – os cursos de computação e de estatística só foram criados mais tarde.
Seu ótimo desempenho na Universidade Columbia qualificou Ramayana a conseguir um vultoso grant da Fundação Rockfeller para a instalação de infraestrutura de pesquisa em física na UFMG. Nas negociações para isso, ele teve apoio do reitor Aluísio Pimenta. O dinheiro foi suficiente para a compra de um liquefator de nitrogênio e outro de hélio, um espectrômetro Mössbauer simples, todas as componentes necessárias para a construção de um espectrômetro de ressonância magnética eletrônica e ENDOR, sistemas de vácuo e criostatos, além de maquinário para uma boa oficina mecânica. Até hoje vemos parte desses instrumentos funcionando no Departamento de Física (DF) da UFMG.
Enquanto aguardava a construção do prédio do Instituto de Ciências Exatas, Ramayana instalou, provisoriamente, dois laboratórios e o liquefator de nitrogênio no Instituto de Pesquisas Radioativas (IPR), que pertencia à Escola de Engenharia, hoje Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear (CDTN), vinculado à Comissão Nacional de Energia Nuclear. Em 1966, Ramayana liderou a criação do curso de Mestrado em Física do Estado Sólido, que contava com dois outros doutores em física, Manoel Lopes de Siqueira e Dálvio Elysio Laborne e Valle, que acabavam de concluir sua formação na Universidade de São Paulo em física teórica e ingressaram no IPR. A primeira turma do curso de mestrado ingressou em 1966. O grant da Fundação Rockfeller incluía quatro bolsas para doutorado em física nos Estados Unidos. Foram usadas para o doutoramento de estudantes que cursaram pelo menos as disciplinas do curso de mestrado, pois fazer pesquisa para a dissertação ainda era desafiador. Nove dos dez primeiros alunos que ingressaram no mestrado concluíram o doutorado.
Ramayana participou muito ativamente do movimento pela reforma universitária, intenso nos anos 1960. A resistência à reforma, que contrariava os interesses dos catedráticos, era tão forte que ela só veio em novembro de 1968, por meio de um decreto autoritário do governo militar. Infelizmente, na esteira da reforma, de caráter progressista, houve perseguição política a muitos docentes reformistas. Posicionar-se diante desse quadro não era nada fácil. O reitor Aluísio Pimenta terminou seu mandato em 1967, antes da reforma, e foi sucedido por Gerson de Brito Mello Boson. Ambos foram cassados e aposentados compulsoriamente pela ditadura militar. Em dezembro de 1969, Marcelo de Vasconcellos Coelho, então com 39 anos, assumiu como reitor para um mandato de quatro anos. Marcelo, destacado pesquisador do Instituto René Rachou, foi um dos grandes reitores da UFMG. Cercou-se de pessoas altamente qualificadas e dirigiu a UFMG com grande êxito em um tempo politicamente tenso, paradoxal e complexo. Ramayana, que durante esse período foi membro do Conselho Universitário, aproximou-se do reitor e teve forte influência sobre ele.
Os desafios eram muito grandes. Os estudantes eram contra a reforma, que incluiu todos os níveis da nossa educação, porque ela resultara dos acordos MEC-USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional), negociados secretamente. Tinham razão ao dizer que os EUA agiram por motivações imperialistas, mas era importante reconhecer as muitas vantagens que a reforma trazia para as universidades. Foi abolida a cátedra e criada uma carreira universitária fundada no mérito, e adotado o sistema humboldtiano em que a educação superior é associada à pesquisa. Para que parte dos docentes pudesse dedicar-se à pesquisa, foi criado o regime de dedicação exclusiva. A pós-graduação, que no Brasil era incipiente e informal, foi formalizada e dividida em dois níveis, o mestrado e o doutorado. A universidade foi estruturada em departamentos, nos moldes norte-americanos. Em resumo, o modelo dos EUA foi copiado em quase tudo. Mas a reforma melhorava a educação superior e viabilizava a pós-graduação e a pesquisa. Levou tempo para que os estudantes percebessem os avanços e aceitassem a reforma.
A implantação da reforma envolveu uma luta que se travou em cada universidade. Ela conferia muito mais autonomia às universidades e as obrigava a formular seus próprios estatutos e regimentos internos. Ramayana envolveu-se intensamente na reforma da UFMG e teve muito êxito, embora não tenha assumido nenhum cargo de direção. Seu método era o debate, e nele demostrava grande lucidez e capacidade de argumentação. Foi muito influente no Conselho Universitário. Mesmo com os estudantes, na época muito ativos na luta contra ditadura e tudo que eles associavam a ela, Ramayana conseguia debater com considerável sucesso. Era tão inspirado e articulado que era difícil não ouvi-lo. O que ele pedia era objetivo e simples: que eles dessem um crédito a pessoas que estavam empenhadas em melhorar a educação oferecida aos estudantes e não as associassem ao governo autoritário.
Uma iniciativa que incentivou docentes com vocação e qualificação para pesquisa a aceitar o regime de dedicação exclusiva foi a criação, em 1975, das Bolsas de Pesquisa (hoje Bolsas de Produtividade na Pesquisa) do CNPq. Na época, o valor das bolsas era uma fração muito significativa do salário do docente. E ter bolsa de pesquisa seria um selo de qualidade, que valorizaria os bolsistas na luta contra os antigos catedráticos, ainda muitíssimo influentes. Ramayana, que participava das discussões a nível nacional das questões ligadas à pesquisa e à pós-graduação, foi um dos defensores das bolsas de pesquisa. Por acreditar muito nelas, foi por três vezes membro do Comitê Assessor de Física e Astronomia do CNPq. Ramayana foi presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF) de 1985 a 1987, tendo como vice Sérgio Machado Rezende. A física já tinha alcançado no Brasil nível e diversificação temática considerável e reconheceu-se a importância de se fazer um levantamento do que estava sendo realizado no país nas diversas áreas da física. Foi preparado então o livro Física no Brasil, sob a coordenação de Sérgio Rezende, o primeiro de vários livros orientadores da nossa física, produzidos pela SBF.
Ramayana foi o grande pioneiro da pós-graduação e pesquisa em física na UFMG, que alcançou projeção internacional. Minucioso, deixou várias marcas em tudo no Departamento de Física. A contribuição de Ramayana para a pós-graduação e a pesquisa no Brasil também foi muito significativa. Teve um papel destacado na criação da Fundação de Amparo à Pesquisa em Minas Gerais (Fapemig), na década de 1980, e foi membro do primeiro Conselho Curador da Fundação.
Ramayana foi uma figura gigante, dotada de grandes qualidades intelectuais e morais. Foi um grande físico e via seu trabalho com zelo missionário, com metas claras e visão de longo prazo. Foi também um grande professor, cujas aulas despertavam forte interesse dos alunos. Era dotado de uma generosidade inteiramente singular, que o levou a colocar seu empenho em desenvolver pós-graduação e pesquisa no DF-UFMG muito acima da sua carreira científica. Foi referência moral e fonte de inspiração para muitas pessoas, seus discípulos ou não. Sua morte foi uma enorme perda, mas seu legado nunca será esquecido.
Por Marcos Assunção Pimenta e Alaor Chaves