Prancheta com o carimbo escrito "Desconexo"

É desconexo o título referente à entrevista publicada na Folha de S. Paulo no dia 2 de abril de 2022 com o título “Física Lisa Randall diz que matéria escura matou dinossauros”. Tal afirmação não condiz com o conteúdo da entrevista com a pesquisadora e causou algum interesse e dúvidas que queremos abordar aqui.

O primeiro passo que deve ser tomado para verificar a qualidade de um artigo é buscar informações sobre quem o escreveu. Salvador Nogueira, autor do artigo, é um experiente e conceituado jornalista científico. Lisa Randall é professora de Física da Universidade de Harvard, uma das mais prestigiosas do mundo. Seus trabalhos em Física de Partículas têm grande influência na comunidade internacional.

O segundo passo é buscar informações sobre a pesquisa que está sendo descrita. Livros podem ser publicados por qualquer pessoa e em geral não passam por um crivo científico. É necessário verificar se a pesquisa mencionada foi publicada em uma revista internacional passando pelo julgamento de cientistas da área. O artigo está baseado em um livro da autora, escrito em 2015 e recém lançado no Brasil com o título: “O universo invisível: Matéria escura, dinossauros e a surpreendente conectividade do mundo”. Como ressalva, mencionamos que um dos autores do presente texto foi o revisor técnico da tradução do livro. Vamos agora apresentar os trabalhos científicos que são a base do livro.

Os primeiros trabalhos científicos de Randall neste assunto  foram publicados em 2013 com a colaboração de JiJi Fan, Andrey Katz e Matthew Reece na revista Physics of the Dark Universe (pode ser baixado no link https://arxiv.org/pdf/1303.1521.pdf) e na prestigiosa revista Physical Review Letters (pode ser baixado no link https://arxiv.org/pdf/1303.3271.pdf) e contam com 239 e 160 citações até o momento, respectivamente. Nestes trabalhos foram propostos novos modelos de matéria escura. Existem muitas evidências observacionais, acumuladas desde a década de 1930, de que cerca de 25% do conteúdo do Universo está na forma de matéria escura, um novo tipo de matéria invisível por não interagir com a luz. Para maiores informações sobre a matéria escura, assista o vídeo da Física ao Vivo dedicado a esse assunto. Os modelos usuais sugerem que a matéria escura interage muito fracamente. Essa interação fraca faz com que a distribuição da matéria escura em nossa galáxia tenha a forma de uma grande esfera que engloba a Via Láctea (e outras galáxias também). Randall e colaboradores propõem a possibilidade de que possa haver um novo tipo de força da natureza que modifique a distribuição da matéria escura (ou de parte dela), tornando-a “achatada” como a matéria normal em nossa galáxia. Assim, existiria um disco de matéria escura em adição ao disco de matéria normal (formado por estrelas e gás). Os títulos dos trabalhos são “Double Disk Dark Matter” e “A Dark Disk Universe”. Os autores sugerem consequências que podem ser testadas através de medidas precisas do movimento de estrelas em nossa galáxia. 

Nestes primeiros trabalhos não há menção a dinossauros. Em 2014, Randall and Reece publicam “Dark Matter as a Trigger for Periodic Comet Impacts” na revista Physical Review Letters (pode ser baixado no link https://arxiv.org/pdf/1403.0576.pdf) com 39 citações. Neste trabalho é feito um estudo detalhado sobre o impacto deste disco duplo na chamada nuvem de Oort, uma fonte de cometas no nosso sistema solar (o recém descoberto cometa Bernardinelli-Bernstein, co-descoberto pelo astrofísico brasileiro Pedro Bernardinelli, foi ejetado da nuvem de Oort – para mais detalhes, assista a apresentação de Bernardinelli no Física ao Vivo). Em particular, é feita uma previsão da densidade que o disco de matéria escura deve ter para ejetar cometas quando o sistema solar, em sua jornada pela Via Láctea, passa pelo disco da galáxia a cada 35 milhões de anos. Deve-se ressaltar que a palavra “dinossauros” não aparece no artigo.

Estes três trabalhos são um bom exemplo do método científico, com a proposição de um modelo de matéria escura que explica uma periodicidade de cerca de 35 milhões de anos de impactos de cometas com a Terra, para a qual há uma certa evidência estatística, ainda que fraca. E esse modelo pode ser testado e falsificado com o estudo do movimento de estrelas na nossa galáxia, como o realizado pelo satélite Gaia. Alguns testes foram de fato realizados e o modelo ainda não foi confirmado e está sob questionamento, pelo menos para os parâmetros necessários para explicar a periodicidade (veja, por exemplo, o artigo publicado na revista Physical Review Letters, em 2018, disponível em https://arxiv.org/abs/1711.03103; neste artigo, do qual Randall não participa, os autores apontam evidências que desfavorecem a presença de um disco fino de matéria escura na Via Láctea).

Hoje sabemos que os dinossauros foram extintos há cerca de 65 milhões de anos devido ao impacto de um grande meteoro. Esta teoria, proposta por uma dupla de pai e filho (Walter Alvarez, o filho geólogo e Luis Alvarez, prêmio Nobel de Física), foi desacreditada até que a cratera deixada pelo impacto foi encontrada no México, apenas em 1990. Outras extinções em massa ocorreram na história da Terra, provavelmente devido ao impacto de meteoros. É possível, de acordo com a teoria de Randall e colaboradores, que a matéria escura tenha contribuído para a ejeção de cometas da nuvem de Oort. No entanto, não se pode afirmar que a matéria escura matou dinossauros, como talvez se possa concluir do título do artigo de Nogueira. Na entrevista e no corpo do artigo isso nunca é afirmado e, exceto pelo título da matéria, a informação passada ao leitor está correta. 

Texto verificado

Pareceristas

  • Rogério Rosenfeld
  • Equipe VeriFísica