Imagem extraída de https://www.nature.com/articles/d41586-022-04440-7
Ricardo Galvão
Em 16 de maio de 1960, baseando-se no trabalho de outros pioneiros, como Charles Townes e Arthur Schawlow, Theodore Maiman pôs em funcionamento o primeiro laser a operar como uma fonte de luz coerente, um laser de rubi. Nos sessenta e dois anos desde então, vimos surgir uma miríade de aplicações de lasers, tanto para a ciência básica como em utilizações diretamente em benefício da humanidade. Nesta semana, recebemos a notícia da comprovação experimental de uma dessas aplicações, perseguida há mais de cinquenta anos, a produção de energia de fusão pelo esquema de “confinamento inercial”, em que feixes de lasers de altíssima intensidade comprimem uma pequena pastilha-alvo, de deutério e trítio congelados, a densidades cerca de três ordens de magnitude acima da densidade sólida, acionando reações de fusão. Em 5 de dezembro, cientistas da National Ignition Facilty – NIF, do Lawrence Livermore National Laboratory – LLNL, atingiram a chamada Condição de Ignição, em que a energia liberada pelas reações de fusão entre deutério e trítio suplanta a energia gasta para comprimir o alvo (no caso do NIF, cerca de 2×106J de energia ultravioleta). Críticos da pesquisa para desenvolver reatores de fusão costumeiramente menosprezam os esforços nesta área com o comentário jocoso de que “os reatores a fusão estarão sempre a trinta anos no futuro”. A essa atitude cientificamente reacionária vale a pena contrapor com a afirmação do Dr. Arati Prabhakar, Conselheiro-Chefe para Ciência e Tecnologia do Presidente dos Estados Unidos da América, ao comentar o resultado do NIF, “Temos uma compreensão teórica da fusão há mais de um século, mas a jornada do saber ao fazer pode ser longa e árdua. O marco de hoje mostra o que podemos fazer com perseverança”.
Sabemos que há dois esquemas que vêm sendo desenvolvidos para viabilizar a produção de energia em reatores de fusão, o mais antigo (iniciado em meados da década de 1950), confinamento magnético, em que plasmas em temperaturas termonucleares são confinados por campos magnéticos apropriados, e o mais recente (iniciado no final da década de !960), confinamento inercial, em que diminutos alvos sólidos são comprimidos a altíssimas densidades, atingindo estados extremos da matéria, em que até mesmo as equações de estado ainda não estão bem estabelecidas. O mais avançado experimento de confinamento magnético é o tokamak JET, instalado em Culham, Reino Unido. Nesse tokamak, também neste ano, foi alcançado um recorde de produção de energia de fusão, 59MJ por 5s. No entanto, a razão entre a potência produzida pelas reações de fusão e a potência gasta para criar e manter o plasma foi Q=0,33, ou seja, abaixo da condição de ganho Q=1 [Nature 602, 371 (2022)]. O NIF é a mais avançada instalação existente em confinamento inercial. No ano passado, já havia alcançado a condição Q˜0,7. Por isso, o excelente resultado que acaba de obter já era, de certa forma, esperado. Mesmo assim, a produção de 2,5MJ de energia de fusão em comparação com 2,1MJ de energia utilizada para alimentar os lasers é um feito notável e bastante auspicioso [Nature – https://doi.org/10.1038/d41586-022-04440-7].
Apesar de sua relevância para produção de energia, a fusão por confinamento inercial – ICF (Inertial Confinement Fusion) tem sido pesquisada com alta prioridade em alguns países devido principalmente à sua utilidade na simulação de artefatos nucleares. De facto, os primeiros trabalhos sobre a ICF foram baseados no Método Ulam-Teller (U-T) sobre implosão de raios X, desenvolvido por Stanislaw Ulam e Edward Teller em 1951 para bombas termonucleares. Logo após a descoberta do laser, destacados cientistas do Lawrence Livermore National Laboratory começaram a investigar seu emprego para produzir ignição por fusão nuclear de micro pastilhas de cerca de um miligrama. Esse trabalho foi classificado até o final da década de 1960, tendo sido desclassificado a partir de 1971, com a publicação de um relatório técnico por um grupo liderado por John Nuckols [Nuckolls, J., Wood, J., Thiessen, A., Zimmermann, G., May 1972. Laser Compression of Matter to Super High Densities. IEEE/IQEC, Montreal, Canada. UCRL-74053].
O esquema de ICF por feixes de lasers é um tanto distinto do método U-T. Em sua concepção original, denominada “acionamento direto do alvo”, um pequeno alvo esférico, de alguns milímetros de diâmetro, é iluminado o mais uniformemente possível por vários feixes de lasers de altíssima intensidade. No caso do NIF, são 192 feixes de laser depositando cerca de 500 TW de potência no comprimento de onda de 0,35 µm na superfície do alvo. Isso causa rápida formação de uma camada de plasma de alta densidade e pressão na superfície do alvo, que explode, causando uma onda de choque que comprime o restante do alvo sólido (gelo sólido de deutério-trítio e gás, com densidade cerca de 0,2g/cm3). O restante do alvo é então comprimido a uma densidade da ordem de vinte vezes a densidade do chumbo, atingindo uma temperatura de cem milhões de graus centígrados. Nessa condição ocorrem as reações de fusão e a queima termonuclear espalha-se rapidamente pelo combustível comprimido, num tempo característico de 200ps. Esse esquema dominou as pesquisas, até meados da década de 1980, mas apresentou várias problemas devido a instabilidades no plasma formado na superfície do alvo, em particular a instabilidade de Rayleigh-Taylor, que aparece na interface de dois fluidos de densidades distintas, quando o menos denso está comprimindo o mais denso. Essas instabilidades destruíam a uniformidade da onda de choque esférica, necessária para comprimir o alvo.
O problema de instabilidades e falta de uniformidade na compressão do alvo foi solucionado com o desenvolvimento do conceito de “acionamento indireto do alvo”. Neste caso, a esfera alvo é colocada no centro de um pequeno cilindro de metal pesado, ouro ou chumbo, por exemplo, com aberturas nas bases para entrada dos feixes de laser. Tipicamente o cilindro, denominado “hohlraum”, tem 2,5mm de altura, 1,5mm de diâmetro da base, com uma abertura 0,8mm, e a esfera alvo tem cerca de 0,5mm de diâmetro. Os feixes de laser entram pelas aberturas nas bases e impingem nas paredes internas do hohlraum, causando intensa emissão de raios-X, principalmente pelo mecanismo de bremsstrahlung inverso. O hohlrum é projetado para produzir raios-X eficientemente e os confinar através do efeito albedo. Isso o preenche com uma alta densidade de fótons de raios-X altamente energéticos, que comprime uniformemente a esfera alvo de deutério-trítio. Esse foi o esquema utilizado pelo NIF para obter o notável êxito descrito em sua nota de 14 de dezembro,
https://www.llnl.gov/news/national-ignition-facility-achieves-fusion-ignition
Naturalmente, como observaram vários comentaristas, esse resultado não implica que reatores à fusão baseados no esquema de fusão por laser possam ser desenvolvidos num futuro próximo. Além de ser uma instalação extremamente complexa e cara, em princípio o LLNL poderia produzir o mesmo resultado uma vez por dia; enquanto uma planta de fusão necessitaria que fosse produzido dez vezes por segundo, como realçou o Professor Justin Wark, da Universidade de Oxford, em uma entrevista para o The Guardian. Mas o avanço científico é inquestionável, como realçou o Professor Jeremy Chittenden, do Imperial College, na mesma entrevista ao The Guardian “It proves that the long sought-after goal, the ‘holy grail’ of fusion, can indeed be achieved.”