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Eloah Corrêa

Doutora Carleane Reis é recém doutora em Física pela Universidade Federal de Santa Catarina. Ela é membra da JEDI (dizemos jêdai!) Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão da SBF. Carleane reconhece ainda ser uma menina em muitos aspectos. Ela está florescendo como uma mulher na ciência. Fruto da maternidade solo de uma mãe preta e nordestina, Reis divide apenas com sua mãe, a existência desta família. Reis admitiu sua paixão pelo ensino. Sempre se colocou no lugar de apoiar pessoas que ainda estão no início de suas descobertas acadêmicas. A jovem pesquisadora compreende a importância de mostrar o cotidiano da pesquisa. 

Imperatriz, no Maranhão. Foto: Prefeitura Imperatriz

Natural de Imperatriz, no Estado do Maranhão, Carleane nasceu na segunda maior cidade do Estado. A cidade faz fronteira com os Estados do Pará e Tocantins. A jovem ganhou o mundo cedo. Em 2010, passou para a Universidade Federal do Maranhão, em São Luís, para cursar licenciatura em Física. A 631 quilômetros do seu lar, Reis iniciou a sua trajetória pelas ciências físicas. Reis nos relatou que não pensava em seguir pela área de Exatas. Sua natureza questionadora a incentivava a fazer Direito. Como ela gostava muito de ler, achou que seria uma possibilidade.

Carleane professora. Foto: Acervo Pessoal

Contudo, Carleane demonstrou sua veia pesquisadora ainda na infância. Ela queria entender como o mundo funcionava. Neste período, seu tio, técnico eletricista, veio passar uma temporada com ela e sua mãe. Os livros e a possibilidade de montar coisas, desmontar e fazê-las funcionar encantaram a menina. Apesar das objeções de seu tio, foi impossível demovê-la de seu objetivo. Após um incidente que a levou a tomar um choque, seguindo instruções do livro, seu tio resolveu introduzi-la no mundo da eletricidade e do magnetismo. Durante o ensino médio, sentiu-se bastante intrigada com a pergunta da sua professora de física. “Por que chove?“

Na época do vestibular, chegou a cogitar em fazer faculdade de Direito. Entretanto, sua mãe a convenceu a seguir seu grande interesse: estudar física. Ela ainda encarava o tema como um hobby. “Filha, ninguém faz exercícios de física como divertimento! Vá estudar o que gosta. Você ama física!” O professor de física do ensino médio também via, em Carleane, paixão e habilidade com a disciplina. Assim, ela optou pela Física.

Carleane entre sua mãe e seu irmão na Federal do Maranhão. Foto: Acervo pessoal

A graduação e seus diversos laboratórios, na Federal do Maranhão, reacenderam em Carleane o encanto da infância em buscar sentido no que acontecia diariamente na natureza. Desta forma, ela se direcionou para iniciação científica em física experimental. Começou entusiasmada com o grafeno, um material com grande potencial de aplicações tecnológicas. Vendo a falta de recursos da universidade para este tipo de pesquisa, Carleane começa a utilizar a difração de raios-X para caracterização de outros materiais. Ao longo da graduação, Reis notou que gostava de trabalhar com dispositivos: baterias, supercapacitores. Buscou universidades de renome nacional onde pudesse desenvolver mais estas pesquisas. Apesar de ter iniciado o mestrado no Maranhão, iniciou pesquisa em um tema totalmente novo na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ela se mudou para Florianópolis e terminou a pesquisa em um ano e meio. Durante o Doutorado, a física explica que trabalhou com interfaces eletroquímicas para entender como alguns materiais se comportam em certas soluções eletroquímicas. A pesquisa do mestrado foi aplicada enquanto, no doutorado, a investigação foi mais fenomenológica. O objetivo foi justamente propor a construção de dispositivos eficientes e sustentáveis.

Carleane no laboratório da UFSC. Foto: Acervo pessoal

É impossível não pensar que a doutora Carleane Reis desenvolveu suas pesquisas da pós-graduação na terra de uma pioneira negra, a professora e jornalista e catarinense Antonieta de Barros, que foi a primeira mulher negra a ser parlamentar no Brasil, lutou pela educação, combateu o racismo e criou o Dia do Professor (15 de outubro). Carleane nos contou que, assim como Antonieta, sempre se viu como professora. Embora admita que existe uma crença no curso de física, que licenciados tendem a ter menos preparo para a pesquisa. No entanto, ela cumpriu todas as disciplinas do bacharelado já que queria seguir como pesquisadora. Depois do caminho percorrido na pós-graduação, Reis reconheceu que a licenciatura a preparou melhor para dar aulas na universidade. Desde cedo ela se engajou em formação de recursos humanos, tendo coorientado alunos desde seu mestrado.  Se um dia a Física desenvolver a máquina do tempo, acreditamos que Antonieta de Barros e Carleane Reis trocariam muitas figurinhas sobre educação! 

Antonieta de Barros. A primeira parlamentar negra do Brasil. Foto: Wikipedia

A doutora explica que a iniciação científica foi a grande responsável pela sua permanência na pesquisa. Ela nos relatou que sua observação, no dia a dia do laboratório, de o envolvimento dos estudantes com projetos de pesquisa da universidade faz com eles permaneçam na carreira. “Aplicando conceitos em uma pesquisa é o que atrai estudantes para o curso de Física”, Carleane comprova. Infelizmente, a física comentou que a situação mudou muito entre 2010 e 2022. Desde a sua graduação até o doutorado. Reis contou com os olhos brilhando que havia abundância de materiais para o laboratório, o programa Ciência sem Fronteiras. No final da sua graduação, os cortes provocaram um verdadeiro esvaziamento nos laboratórios. “Não há bolsas para todos. Temos de reciclar material no laboratório.” Ela lamentou. 

Festa de aniversário surpresa para Carleane na UFMA. Foto: Acervo Pessoal

Carleane observou que gradativamente os grupos mais vulneráveis iam desaparecendo dos corredores da universidade. Ela acredita que, se iniciasse a graduação hoje, não haveria chance de concluir. A física constatou que sua permanência na universidade se deveu à existência de políticas públicas. Ela refletiu que os desafios entre mulheres brancas e negras na Física são diferentes. Carleane assentiu que hoje o debate sobre a desigualdade de mulheres na ciência está posto. Entretanto ela atesta que uma mulher negra, nordestina, como ela mesma, carrega um estereótipo muito forte. O racismo, sexismo e o regionalismo chegam muito antes do indivíduo. Vencer as barreiras externas para se colocar como mais uma estudante é algo que deve ser realizado a cada milissegundo. Isso torna a vida de uma pesquisadora negra extremamente exaustiva. O descrédito, o silenciamento, dificuldades de permanência na universidade ainda são barreiras enfrentadas por meninas e mulheres que desejam a carreira científica. Elas acabam ocorrendo tanto a nível macro, mas no micro também.  A doutora admitiu que a universidade está discutindo o problema, mas ainda há poucas ações concretas no sentido de derrubar o efeito tesoura, que provoca o desaparecimento das mulheres negras na estrutura científica. Carleane não deu um diagnóstico sobre todos os desafios envolvidos, porém alertou que é preciso pensar estrategicamente para diminuir este vácuo de mulheres na ciência. 

Carleane apresentando pesquisa em evento internacional. Foto: Acervo Pessoal

O novo governo federal chega com um marco para a ciência e a tecnologia brasileira: uma mulher liderando este processo: A engenheira eletricista Luciana Santos, pernambucana, ex-Secretária de Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco assumiu o Ministério da Ciência e da Tecnologia. Em seu discurso de posse, ela citou a necessidade de inclusão de meninas e mulheres na ciência, bem como retomar o investimento nas universidades públicas. Carleane Reis vê a representatividade de maneira muito positiva. Entretanto, ela advertiu que precisamos agir em conjunto. A partir disso, ela indagou sobre a diversidade de mulheres, que estejam junto à Ministra, para realmente reduzir estas assimetrias nacionalmente. Mulheres negras, indígenas, trans e brancas precisam contribuir para um marco de medidas para que a representatividade das mulheres na ciência possa avançar.

Carleane no restaurante universitário da UFSC com a Profª Manuela Souza do Depto de Matemática da UFBA e colegas de universidade. Foto: Acervo Pessoal

A jovem doutora recorreu à filosofia africana para aconselhar mulheres e meninas que desejam ter uma trajetória na ciência. Carleane falou sobre sankofa. Este conceito é oriundo dos povos de língua Akan que estão compreendidos entre Costa do Marfim, Gana e Togo. Sankofa é olhar para trás, ler, observar quem veio antes de você. Ela também recorre à própria física, que não compara grandezas e escalas diferentes e sugere evitar a comparação com pessoas que têm pontos de partida muito diferentes do seu. Estar em um coletivo também foi considerado fundamental pela pesquisadora para poder resistir nestes espaços ainda tão machistas.

Sobre o conceito africano de Sankofa. Foto: Adobe/Stock

A trajetória da jovem cientista acompanhou o crescimento das redes sociais. Reis mantêm ativo o seu perfil @fisica.preta no Instagram. A SBF convidou Carleane Reis a pensar sobre o impacto que a rede vem causando na forma de pesquisar hoje. A física relembrou o papel importante que a divulgação científica teve durante a pandemia. Sobretudo, no Brasil, onde circulou muita desinformação sobre a transmissão da COVID-19, formas de prevenção e vacinação. Carleane também advertiu que a universidade precisa observar mais a importância da divulgação científicae buscar destinar recursos para esta atividade. A física entende que é importante comunicar o que ocorre com o investimento em ciência. Contudo, Carleane admitiu que a divulgação científica exige responsabilidade e preparo. Além disso, não se pode mensurar a capacidade de uma pesquisadora pela quantidade de seguidores em suas redes. Ela pensa que a universidade precisa pautar mais estas implicações nos ambientes de redes sociais. Carleane acabou colocando o seu perfil no Instagram em suspenso pela prioridade de encerrar o doutorado. Ela deseja retornar, mas quer articular parceria e captar recursos no sentido do cuidado que a atividade demanda. 

Carleane em um bloco afro de Florianópolis. Foto: Acervo Pessoal

Finalizando o nosso tempo com Carleane ela deixou algumas sugestões de conteúdo para mulheres e meninas na ciência. Ela sugere uma live (Primeira PhD em Física do Brasil: ProfªDrª Sônia Guimarães| Mulheres negras na ciência| Física Preta) que ela realizou com a primeira doutora negra em Física do Brasil, Professora Sônia Guimarães do ITA. A jovem pesquisadora acredita que o livro da intelectual estadunidense “bell hooks” “Ensinando a Transgredir” é fundamental para se entender dentro do espaço universitário. Ela acrescentou outra obra da autora: “Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra”. Esta leitura traz reflexões de “bell hooks” sobre a determinação de mulheres negras apresentarem certos comportamentos na academia, mostra que transitar entre o silêncio e a fala é um gesto desafiador que cura, que possibilita uma nova vida e um novo crescimento. 

Dia da física Carleane: o livro Erguer a voz, de bell hooks

Agradecemos à Carleane Reis por ter nos cedido este tempo para discutir sobre temas tão importantes alusivos ao Dia Internacional de Mulheres e Meninas na Ciência, no dia 11 de fevereiro.