Viviane Morcelle de Almeida. Crédito: arquivo pessoal

A astrofísica Natalia Vale Asari foi a ganhadora do Prêmio Carolina Nemes 2019.  Além da excelência da pesquisadora Natalia, a comissão do júri ficou impressionada com a  qualidade de várias das candidatas e incentiva as não agraciadas nesta edição que concorram novamente ano que vem. Também chamou a atenção do júri a série de histórias inspiradoras de vida acadêmica das candidatas, entremeadas por dificuldades associadas a questões de gênero, raça e origem sócio-econômica. Um desses modelos de luta e superação é a física Viviane Morcelle Almeida (foto acima).

Confira o vídeo que a professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) gravou para a SBF, apresentando sua pesquisa. Conheça também na entrevista a seguir a trajetória de Viviane, contando como, mesmo enfrentando uma série de problemas financeiros e de saúde, além de muitos preconceitos ao longo de seus 40 anos de vida, conseguiu estabelecer uma carreira científica de nível internacional em física nuclear experimental.

Como surgiu seu interesse pela física?

Nasci na cidade do Rio de Janeiro e morei quase a vida toda no subúrbio da Penha, onde resido atualmente.  Apesar da proximidade com o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não conheci ninguém que estudasse lá até ingressar na universidade. Desde a passagem do cometa Halley, quis me tornar cientista. Tinha muita vontade de estudar, mas não via a universidade pública como meu lugar. Desde criança lia muito, preferia ler a brincar na rua. Meu pai sempre me incentivou a ler e estudar. O sonho dele era ser professor universitário de inglês, mas nunca pode concretizar. Minha mãe também sonhou com a universidade, mas nunca pode ingressar. Ela sempre me ensinava na escola básica e exigia que fosse a melhor. Além disso, tive um bom exemplo em minha rua, onde morava um defensor público que, mesmo nascido muito pobre e trabalhando desde criança, conseguiu uma bolsa para estudar Direito na PUC. Brincava com seus filhos e os seus brinquedos que meus pais não podiam comprar. Me dedicava especialmente a jogos de tabuleiro e videogames. Nunca gostei de brincar de casinha. Comecei a trabalhar aos 13 anos de idade, escolhendo me formar em técnica em eletrotécnica para ter um emprego, profissão que exerci por alguns anos antes de me estabelecer como pós-graduanda. Foi durante o curso técnico, feito na Escola Técnica Estadual Juscelino Kubitschek, que percebi que podia ingressar na universidade pública.

Você sempre teve muito apoio de seu pai para prosseguir nos estudos.

Minha família era meu pai, minha mãe, minha irmã quatro anos mais nova, e meu irmão oito anos mais jovem. Mas sempre fui mais próxima de meu pai. Ele era negro, nascido no sertão da Bahia. Se alfabetizou aos 15 anos de idade e viveu de subempregos a vida inteira. Seu primeiro sonho era ser técnico em eletrotécnica. Chegou a estudar na Escola Técnica Estadual Ferreira Viana, mas regras instituídas durante a Ditadura Militar determinaram sua transferência para outra escola fazer secretariado. Acabou continuando apenas como mecânico de refrigeração. Trabalhamos juntos durante alguns anos. Parte do dinheiro que consegui juntar para estudar foi com os serviços que fizemos. Ele fazia a parte mecânica e eu cuidava da parte elétrica. Instalava e consertava motores, chaves contactoras e painéis de comando em bares e supermercados. Assim ele não precisava pagar ninguém e podíamos ter algo melhor. Durante a explosão da demanda por ventiladores de teto no Rio, nos meados dos anos 1990, eu e um amigo da Vila Cruzeiro faziamos a instalação deles, ajudando a pagar as contas da casa. Meu pai sempre foi o meu principal apoiador, me dando forças para prosseguir nos estudos científicos. Quando ficou severamente doente e precisava cuidar dele no hospital, quis abandonar a faculdade de novo, mas ele me proibiu. Disse que se eu fizesse isso, não me deixaria mais ir no hospital ou falar com ele. Disse que estava realizando seu maior sonho, ao se tornar professor universitário através de mim. Foi nesse dia no hospital conversando com meu pai que também descobri que já havia realizado outro sonho dele, quando me formei em eletrotécnica.

Problemas de saúde e financeiros obrigaram você a interromper diversas vezes os estudos.

Na primeira vez que ingressei na universidade, logo depois do ensino médio, só consegui cursar por cerca de dois meses. Os horários do emprego como técnica e o trânsito não me permitiam chegar a tempo para assistir às aulas na graduação em física da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Cheguei a um impasse, pois dependia da renda do emprego para estudar. Só mais tarde consegui largar o emprego e ingressar na UFRJ. Três dias depois, porém, meu pai foi internado no Hospital Universitário em estado gravíssimo, com risco de morte. Ele teve lúpus eritematoso, mas foi inicialmente diagnosticado erroneamente com febre reumática, o que agravou seu caso e o levou a muitas outras internações em estado grave. Com as condições precárias no hospital, meus irmãos novos demais e minha mãe precisando trabalhar, precisei ser sua cuidadora durante toda a minha graduação e pós-graduação. Na segunda vez que entrei na universidade, passei o primeiro semestre sem conseguir assistir às aulas. Aparecia no Instituto de Física apenas para pegar notas de aula e fazer provas. Seis meses depois, meu pai voltou pra casa, cego, sem andar e incapaz de segurar um copo ou tomar um banho. Consegui passar em todas as disciplinas, mesmo ainda precisando faltar às aulas para cuidar dele, mas no fim do semestre acabei adoecendo gravemente e assim desistindo novamente da graduação. Depois de retornar ao curso e estudar por mais três semestres, adoeci novamente e acabei internada no Hospital Universitário. Passei uma semana com febre alta até os médicos descobrirem que se tratava de um cisto hemorrágico e realizarem uma cirurgia de emergência de alto risco, sem meus pais saberem. Depois vieram mais internações do meu pai e falta de dinheiro. Para mim, a etapa mais difícil de superar foi a graduação. Mas nunca reprovei.

E como começou a fazer pesquisa científica? 

Mesmo sendo difícil para as pessoas entenderem minha situação, recebi apoio de muitos professores, em especial de três pessoas maravilhosas que conheci no Instituto de Física da UFRJ. A primeira foi a Professora Maria Antonieta Teixeira de Almeida, por meio da qual consegui minha primeira bolsa, para trabalhar no Laboratório Didático (LADIF), atendendo a visitas de escolas e explicando experimentos aos alunos. A segunda pessoa foi o Professor Luís Felipe Coelho que, em 2001, me levou a trabalhar no Laboratório de Colisões Atômicas e Moleculares (LACAM) da UFRJ, onde comecei um projeto de iniciação científica com bolsa do CNPq na linha de pesquisa com que trabalho até hoje, que é a física experimental de aceleradores. Mesmo assim, continuava pensando em sair da física, porque além de estudar, tinha meu pai para cuidar e meu trabalho. Além disso, cheguei a desmaiar de fome durante a graduação, mais de uma vez, porque a UFRJ ainda não tinha um restaurante universitário na época. Devido minha vulnerabilidade econômica e de saúde, consegui uma vaga no alojamento universitário, mesmo morando perto. Essas dificuldades me levaram ao estudo do marxismo e a participar do Centro Acadêmico de Física, me tornando sua presidente por 3 anos, organizando atos e propostas de mudança para a universidade. Foi então que conheci o Professor Ney Vugman. Ele me me convenceu a não desistir mais uma vez. Me perguntou sobre o que mais gostava de fazer em física, qual era meu maior sonho. Percebi que enquanto meu projeto de iniciação científica tinha mais a ver com engenharia de materiais, meu maior interesse estava na física nuclear. Assim pesquisei na internet e encontrei pesquisadores de física nuclear no site do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Foi a melhor coisa que fiz na vida, ela ganhou um novo sentido.

Como sua vida mudou depois disso?

Enviei uma carta de intenção ao Professor Sérgio José Barbosa Duarte, que aceitou conversar comigo. Passei na seleção do CBPF e ganhei a bolsa do CNPq, mas o Sérgio já orientava dois alunos e não podia pegar mais. Ele então me indicou para outro colega do CBPF, o Professor Odilon Antônio Paula Tavares, que se tornou uma das pessoas mais importantes de minha vida, meu amigo até hoje. Era um orientador exigente, mas muito legal. Uma de suas exigências era a História da Física Nuclear. Dizia que um cientista não pode fazer pesquisa sem conhecer a sua história. Foi assim que conheci um de meus livros favoritos, Dos Raios X aos Quarks, do Emilio Gino Segré. A obra é uma oportunidade única de se conhecer a história da física moderna do ponto de vista de alguém que participou de sua construção. Hoje é leitura obrigatória para todos os meus alunos de iniciação. O trabalho com o Odilon me deixou mais motivada em acompanhar os cursos e acabei premiada nas duas jornadas de iniciação científica que participei depois.

E como começou sua pós-graduação na USP?

Foi doloroso largar o Odilon depois de terminar a graduação, mas necessário, porque sua pesquisa era teórica e meu sonho era fazer física nuclear experimental. Em 2004, conheci a Professora Alinka Lépine, que me aceitou como aluna de mestrado no laboratório Pelletron da USP, o único acelerador de física nuclear do país. Foi nessa época que a equipe do Pelletron inaugurou o sistema RIBRAS, o único equipamento do Hemisfério Sul capaz de produzir e selecionar núcleos exóticos de baixa energias, cujo estudo é um dos campos de  fronteira da física nuclear, atualmente. Participei do primeiro experimento do RIBRAS e de quase todos os seguintes, continuando na USP no doutorado, sob orientação do Professor Rubens Lichtenthaler Filho, que também foi uma pessoa ímpar na minha vida.

Você também enfrentou problemas financeiros e de saúde durante a pós-graduação e nos seus primeiros empregos.

Além de meus interesses acadêmicos, escolhi fazer pós-graduação na USP porque a universidade oferecia moradia em alojamento estudantil e restaurante universitário, além de São Paulo não ficar tão longe do Rio de Janeiro, onde meu pai continuava doente e precisando de mim. Além do custo das viagens frequentes entre São Paulo e Rio, gastava muito com remédios tanto para mim como para meu pai, além de ajudá-lo financeiramente. Em 2008, comecei a ter dores nos pés que nenhum médico conseguiu diagnosticar inicialmente. As dores foram piorando, limitando minha locomoção. Só anos mais tarde, em 2015, descobri que se tratava de uma artrose grave. A doença me levou a se submeter a duas cirurgias no ano seguinte e que acabaram me deixando com uma deficiência física. Até hoje preciso de muleta para me locomover. Além disso, em 2010, desenvolvi outra doença que tenho até hoje, a eczema disidrótica, uma condição associada ao stress e que provoca o aparecimento de bolhas nos pés quando uso calçado, me obrigando desde então a andar apenas de chinelo. Também a partir  de 2010, a saúde de meu pai piorou ainda mais, o que me impediu de aceitar muitas oportunidades para realizar pesquisas no exterior. Mesmo assim, com ajuda de meus irmãos mais novos, consegui viajar algumas vezes para realizar estágios curtos de uma a duas semanas em laboratórios na França e nos Estados Unidos. Na física experimental, as coisas podem quebrar. Problemas nos experimentos atrasaram minha tese e acabei ficando meses sem bolsa. A ajuda veio do meu irmão, que tinha apenas 22 anos e também trabalhava como mecânico, ajudando meu pai. Eles me mandavam 50 reais por mês. Pode parecer pouco, mas para eles era muito. Além disso, meu marido, doutorando na USP, me ajudava financeiramente. Terminando o doutorado, tive de voltar definitivamente ao Rio de Janeiro para cuidar de meu pai que, além do lúpus, estava com câncer e passava muito mal com a radioterapia. Em 2011, iniciei um estágio de pós-doutorado na UFF,  mas como o CNPq atrasou minha bolsa, quase desisti de tudo para voltar a ser técnica, porque precisava de dinheiro. Minha mãe entrou em ação e me proibiu, dizendo que não permitiria que fizesse isso. Se fosse necessário, ela arrumaria um emprego, mesmo com sua saúde frágil. No ano seguinte, porém, a UFF acabou me contratando como professora adjunta temporária. E então meu pai foi internado no hospital pela última vez. Me dividia entre Niterói, a Penha e o Fundão, indo e vindo de ônibus. Foram três meses sem deixar um dia de estar com meu pai. Tive de reunir minhas últimas forças para dar aula sem chorar em sala. Quando meu pai faleceu, fiquei muito mal, passando por um processo de luto que interrompeu minha carreira acadêmica até o final do ano seguinte. Em 2013, passei em um concurso para professora adjunta na Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), no campus de Itabira, Minas Gerais. Embora não tenha me adaptado bem à cidade e ainda passando mal com o luto e a solidão, gostei da experiência de dar aulas de física experimental por lá, conhecendo o Professor Ricardo Shitsuka, que me levou a me dedicar também à pesquisa na área de ensino. As coisas começaram a melhorar quando ingressei como professora adjunta no Departamento de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRRJ), em 2014, me tornando a única docente mulher do departamento naquele momento. Hoje somos duas!

Como sua deficiência e a necessidade de cuidar de sua mãe afetaram seu trabalho na UFRRJ?

A saúde de minha mãe tem piorado e não tenho condições de deixá-la sozinha. Ficar perto dela é um dos motivos pelos quais continuo morando na Penha e viajo apenas durante períodos curtos para São Paulo e ao exterior, para colaborar com o Laboratório Tandar, na Argentina, e o Laboratório de Estrutura Nuclear da Universidade de Notre-Dame, nos Estados Unidos. Logo que cheguei na UFRRJ, me colocaram para lecionar Evolução da Física, que amo, mas também uma outra série de matérias, já chegando a ter uma carga horária de 14 horas semanais. Aconteceu que não conseguia tempo para fazer pesquisa com tantas aulas, os cuidados com minha mãe e as dores nos pés, que pioraram com o desenvolvimento da artrose. Em 2016, as cirurgias me levaram ao afastamento da universidade, passando dois anos longe da pesquisa. Atualmente, está cada vez mais difícil para mim andar, dirigir e viajar para participar de congressos. Com as dores, os cuidados e os tratamentos, tenho um dia bastante limitado com apenas cerca de seis a sete horas úteis. Precisei exigir os meus direitos para que reduzissem minha carga didática ao mínimo de 8 horas e para dar aula sentada. Nesse processo sofri com vários tipos de assédio moral, machismo e preconceitos. A UFRRJ me trouxe o melhor e o pior na vida acadêmica. Minha resposta não foram processos, mas fazer algo positivo para que outras pessoas não passassem pelo mesmo. Como sempre estudei muito sobre Ciências Humanas, resolvi então aplicar minha experiência e conhecimento na criação do Laboratório de Estudos sobre Feminismo e Racismo nas Ciências Exatas, o LEFERCE, patrocinado pela PROEXT-UFRRJ. O trabalho de nosso laboratório busca entender de que forma a violência de gênero – que vai do assédio de gênero, o machismo, até o assédio sexual e o estupro – impacta na carreira das mulheres que fazem física, em particular, como essas violações de direitos humanos estão associadas ao chamado efeito tesoura. Também pesquisamos dos estudante do ensino fundamental aos pós-graduandos para compreender como se formam os estereótipos de gênero e étnico-raciais nas Ciências Exatas. Esse ano, o projeto do laboratório foi o único ligado a Ciências Exatas a ser contemplado por um edital da Pró-Reitoria de Extensão da UFRRJ, relacionado ao Pacto Nacional Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade e da Cultura da Paz e Direitos Humanos, uma iniciativa do governo federal anterior, muito necessária na UFRRJ.

Por quê?

O campus da UFRRJ fica em Seropédica, um dos municípios mais violentos da Baixada Fluminense. Entre as universidades públicas do Rio de Janeiro, nosso caso é o mais alarmante, com altos índices de estupro e assédio sexual. Outra particularidade nossa é que, diferente da maioria das universidades federais, 80% de nossos alunos são negros, vindos das classes D e E, e da escola pública. Além disso, enquanto a desigualdade de gênero vem diminuindo em alguns grandes centros urbanos, essa não é a nossa realidade. Temos pouquíssimas alunas no curso de física. Aliás, não conseguimos preencher todas as vagas do curso de física, pois não há estudantes interessados o suficiente. É por isso que uma das atividades do LEFERCE são as visitas às escolas da região e na periferia do Rio de Janeiro, onde damos palestras para crianças e adolescentes. O último evento que realizamos em Seropédica foi a oficina “Quem Quer Ser Cientista?”. Perceba que não há gênero determinado na frase, justamente para desconstruir estereótipos. Um público especial para nós são os alunos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Segundo um professor de física de EJA de Seropédica, a maioria dos alunos frequenta a suas aulas não apenas para obter o diploma, mas ter um prato de comida garantido, e o máximo que acreditam poder alcançar na vida é seguir a profissão de moto-táxi na cidade. Eu me apresento para tentar desconstruir esse tipo de ideia e incentivar os jovens dessas comunidades a ingressarem na carreira científica e engenharias. Ao mesmo tempo, essa aproximação com a realidade dos alunos de EJA nos levou a desenvolver jogos como propostas didáticas alternativas para ensinar física moderna. Adoro a UFRRJ, me sinto feliz e útil ali, onde sinto que faço a diferença na vida das pessoas. Busco retribuir tudo que recebi da universidade durante minha vida. Temos um reitor sensível às nossas demandas, muitos alunos interessados, professores comprometidos com a educação pública. Além disso, creio que a vista do Departamento Física é uma das mais lindas do mundo.

E como continua com sua pesquisa básica em física?

Com meus problemas de locomoção e sem recursos devido à crise financeira da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) até o ano passado, tive que reavaliar o que podia fazer na minha pesquisa. Além da Física Nuclear, comecei então a colaborar com o LACAM da UFRJ, cujo acelerador fica no campus principal da UFRJ, perto de minha casa. Trabalho em um projeto de pesquisa sobre colisões moleculares de interesse atmosférico, como professora colaboradora do programa de pós-graduação em física da UFRJ. Ao mesmo tempo, minhas colaborações com o LACAM e o Pelletron têm tido um impacto positivo não apenas na minha pesquisa, mas em meus alunos na UFRRJ, trazendo para eles a pesquisa de ponta em física. Cheguei a levar alguns deles comigo em minha última viagem a São Paulo, para conhecerem o Pelletron na USP. Agora, com a FAPERJ em processo de recuperação estamos terminando a implementação do Laboratório de Simulações Atômicas e Nucleares na UFRRJ, onde até recentemente eu não tinha nenhum computador para trabalhar. Este ano, o projeto que coordeno recebeu o auxílio financeiro APQ1 2019 da FAPERJ, o único do Instituto de Ciências Exatas (ICE) da UFRRJ. O apoio do atual chefe do ICE, Robson Mariano, foi essencial para que eu retornasse às minhas pesquisas. Além claro do meu marido, que nesses últimos anos tem sido meu maior apoiador. Minha família ama o fato de eu ser uma cientista.

Você também coordenou recentemente um estudo sobre assédio de mulheres na física, que contou com colaboração de pesquisadores do Grupo de Minorias da SBF e foi premiada com uma bolsa pela União Internacional de Física Pura e Aplicada (IUPAP).

O Professor Antônio Carlos Fontes dos Santos, além de ser um dos coordenadores do LACAM, também coordena o Grupo de Trabalho de Minorias da Sociedade Brasileira de Física. Isso nos levou a colaborar além da física básica, em estudos de questões de gênero e étnico-raciais nas Ciências Exatas. Nos conhecemos desde 2004, e desde então ele sempre me apoiou e inspirou. Outra grande colaboradora em meus trabalhos é a Professora Zélia Ludwig da UFJF, que acabou se tornando uma de minhas melhores amigas e companheira de luta. Nós três temos histórias parecidas e acho que isso nos uniu. Fizemos no Brasil, um estudo similar ao realizado por Lauren Aycock, da Universidade de Maryland, Estados Unidos. O levantamento feito em 2017 por Aycock e seus colaboradores durante uma conferência de estudantes sugere que 75% das alunas de graduação em física nos Estados Unidos já sofreram algum tipo de assédio de gênero. Mas quando iniciamos nossa pesquisa, o trabalho da Aycock não tinha sido publicado. Em nosso estudo entrevistamos 89 mulheres ligadas à física com idades variando entre 18 e 67 anos. Cerca de 95% das participantes relatou ter sofrido algum tipo de assédio, sendo que nenhuma delas chegou a denunciar o ocorrido. Em maio deste ano recebi o Women in Physics: IUPAP Grant Travel Award, que me permitiu apresentar os resultados desse estudo na Conferência Interamericana de Ensino de Física (CIAEF), em julho, no Uruguai. O mais interessante foi notar que a maioria das mulheres que entrevistamos não respondeu ao questionário do Grupo de Trabalho Sobre Questões Gênero da SBF, em grande parte por medo de identificação. Tivemos entretanto autorização para apresentar cinco depoimentos colhidos na pesquisa e que são estarrecedores. Recomendo que minhas alunas leiam o estudo da Aycock, porque se você pesquisar sobre “assédio de gênero” não vai achar nada no Brasil. É um termo que as pessoas ainda não usam por aqui, embora já venha sendo considerado nos Estados Unidos. Assédio de gênero é tão danoso quanto o assédio sexual. Toda situação preconceituosa criada por seus pares e que provoca problemas psicológicos em estudantes e professoras é um tipo de assédio de gênero. Em geral, nas discussões sobre o feminismo e as questões de gênero, as pessoas tendem a falar sobre os problemas da maternidade, a figura dos cientistas em livros etc., mas existem muitas outras questões que prejudicam a mulher ou que levam a diversos outros tipos de assédio.

Que outras questões de gênero são essas?

São justamente as questões étnico-raciais e sócio-econômicas, que fazem de meu caso uma exceção entre a maioria das professoras universitárias. As demandas da mulher vinda da periferia são diferentes da mulher de classe média. Eu por exemplo não pude ser mãe, não tive direito a essa escolha, mas tive um pai para cuidar. Hoje tenho minha deficiência e uma mãe para cuidar, sem condições financeiras para contratar alguém para ajudá-la. Ser cuidadora de um parente é tão importante quanto ser mãe. Assim como estamos começando a levar em conta as necessidades da maternidade e seu impacto na carreira acadêmica da mulher, também deveríamos levar em conta as necessidades dos cuidadores, bem como de pessoas com deficiência. Fiquei quatro anos sem atuar diretamente na pesquisa, desde o fim do doutorado. Sou cuidadora desde a graduação. Mas isso não é levado em conta nas avaliações. Meu marido não pôde até agora realizar um pós-doutorado no exterior porque não tem ninguém para cuidar de mim. Sendo questionado nos concursos para professor universitário, ele prefere não explicar o motivo, pois muitos ainda desconsideram essas questões. Assim minha deficiência também impacta a carreira dele. Nós, cuidadores, continuamos invisíveis nos editais. Enquanto não discutirmos esses assuntos, será incomum pessoas como eu chegarem aonde cheguei.

Que mensagem gostaria de passar a todas as estudantes interessadas em Ciências Exatas?

Me senti sozinha muitas vezes durante minha carreira. Mas então conheci pessoas como o Prof. Odilon Tavares , a Profa. Alinka Lépine, o Prof. Rubens Lichtenthaler, o Prof. Valdir Guimarães e o Prof. Paulo Gomes, bem como o  Prof. Antônio Carlos e a Profa. Zélia Ludwig do Grupo de Minorias da SBF. Essa rede de colaboradores me trouxe  ânimo para trabalhar, tanto nas questões de gênero quanto na pesquisa em física. É o que tento passar em minhas aulas, artigos e palestras. Além disso, ter a Alinka como orientadora foi inspirador, visto que ela, além de ser mulher e extremamente inteligente, atuava como líder de seu grupo de pesquisa, se tornando posteriormente diretora do Laboratório Pelletron da USP. Seu exemplo me dava forças para não desistir. Parava, pensava e dizia para mim: a Alinka é forte, segue sempre em frente, quero um dia me tornar uma cientista como ela. Ter uma mulher como inspiração fez toda a diferença para mim porque, até chegar na USP, só via homens em posição de liderança. Quero mostrar às pessoas como eu até onde elas podem chegar, mas precisamos de ajuda. Fica o recado de que, se precisarem de alguém para conversar, se precisarem de alguém para dar apoio, eu estou aqui. Cuidar de meu pai foi um privilégio para mim. Ele é meu herói e nunca me arrependi de não ter ido ao exterior para ficar ao seu lado. Se precisar, me reinvento, mas desistir nunca foi uma opção para mim. Nunca desisto e sempre serei uma cientista.