Tsunami encobrindo o quadro negro de uma sala de aula. (Crédito; Frederico S M de Carvalho/Dall-E 3)

O ensino médio brasileiro vem passando por um “tsunami” contínuo, há alguns anos, que, por óbvio, vem atingindo também o ensino de Física. Acreditamos que é urgente um acompanhamento desta situação, pelas sociedades científicas, bem como um posicionamento público.

O primeiro momento da série de maremotos foi a aprovação da “Lei do Ensino Médio”, em fevereiro de 20171, que definiu o aumento do número de horas por ano de 800 para 1000, em 5 anos, isto é, até 2022. Além disso, a Lei define que ao currículo obrigatório seria dedicado no máximo 60% desta carga horária, reduzindo o número de aulas de disciplinas “tradicionais”. Assim, as Ciências da Natureza (que agrupa Biologia, Física e Química) sofreram uma redução de carga horária em vários estados. No Distrito Federal, por exemplo, as aulas de Física, Biologia e Química ficaram restritas somente aos primeiros semestres dos três anos do Ensino Médio, ficando os segundos semestres dedicados às aulas da área de Ciências Humanas. Outro exemplo é o de São Paulo, em que as duas aulas semanais em cada ano do Ensino Médio foram alteradas para duas aulas semanais no 1º ano, uma aula semanal no 2º ano, e nenhuma aula para o 3º ano. A reestruturação da carga horária substituiu parte das aulas de Ciências pelos chamados itinerários formativos. No lugar das aulas de Física (ou de Química, ou Biologia), os estudantes teriam aulas em temas interdisciplinares, que combinariam ciências e história, ou matemática, geografia e sociologia, por exemplo. Em teoria, os itinerários formativos, desenvolvidos em 40% da carga horária, possibilitariam ao aluno escolher a formação que desejasse.

O segundo momento desse processo de reforma educativa foi a homologação da etapa do ensino médio da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)2, em dezembro de 2018. A BNCC para o Ensino Médio não está estruturada em termos de conteúdos, mas sim em termos de competências e habilidades. Física, Biologia e Química são agrupadas em Ciências da Natureza, e as competências a serem desenvolvidas pelos estudantes, e que reproduzimos a seguir, são as seguintes (BNCC, 2018, p. 553):

1. Analisar fenômenos naturais e processos tecnológicos, com base nas interações e relações entre matéria e energia, para propor ações individuais e coletivas que aperfeiçoem processos produtivos, minimizem impactos socioambientais e melhorem as condições de vida em âmbito local, regional e global.

2. Analisar e utilizar interpretações sobre a dinâmica da Vida, da Terra e do Cosmos para elaborar argumentos, realizar previsões sobre o funcionamento e a evolução dos seres vivos e do Universo, e fundamentar e defender decisões éticas e responsáveis.

3. Investigar situações-problema e avaliar aplicações do conhecimento científico e tecnológico e suas implicações no mundo, utilizando procedimentos e linguagens próprios das Ciências da Natureza, para propor soluções que considerem demandas locais, regionais e/ou globais, e comunicar suas descobertas e conclusões a públicos variados, em diversos contextos e por meio de diferentes mídias e tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC). (Os grifos são dos autores.)

A cada uma das competências é atribuído um conjunto de habilidades, nas quais o conteúdo aparece lateralmente, como, por exemplo, na habilidade “Realizar previsões, avaliar intervenções e/ou construir protótipos de sistemas térmicos que visem à sustentabilidade, considerando sua composição e os efeitos das variáveis termodinâmicas sobre seu funcionamento…”, ou “Realizar previsões qualitativas e quantitativas sobre o funcionamento de geradores, motores elétricos e seus componentes, bobinas, transformadores, pilhas, baterias e dispositivos eletrônicos…”.

Em cada uma das três competências sugere-se “mobilizar conhecimentos conceituais” em, por exemplo, “espectro eletromagnético; modelos atômicos, subatômicos e cosmológicos; astronomia; evolução estelar; gravitação; mecânica newtoniana; previsão do tempo; história e filosofia da ciência; …”

Depreende-se do texto da BNCC – Ensino Médio que os conhecimentos de Mecânica, Termodinâmica, Óptica, Eletromagnetismo e Física Moderna devam ser mobilizados para que as competências sejam desenvolvidas. Como devemos interpretar essa mobilização? Trata-se de conhecimentos já adquiridos? Em que etapa de ensino teriam sido adquiridos esses conhecimentos?

Divulgada a nova lei do ensino médio, e homologada a Base Nacional Comum Curricular, coube a estados e municípios elaborar os seus currículos para o ensino médio, a partir das diretrizes apresentadas na BNCC. Há no momento 27 currículos estaduais ou distritais que devem incluir o conteúdo das disciplinas dedicadas à Base Nacional Comum, a orientação sobre projeto de vida dos estudantes, e as possibilidades de itinerários formativos, interdisciplinares, para escolha dos alunos. De acordo com seus programas, os estados também preparam materiais didáticos. O processo está, em 2024, em fase final de implantação.

Em um terceiro momento, que é o atual, acaba de tramitar no Congresso Nacional, sete anos após a promulgação da Lei do Ensino Médio, a proposta de uma revisão3 que pretende devolver à formação geral comum parte da carga horária, que passaria a constituir 80% da carga horária total, nos três anos de ensino. Essa proposta foi aprovada pelo Congresso Nacional, no último dia 9 de julho, mas apenas para estudantes que não optem pelo ensino técnico, e está a caminho da sanção, ou veto, presidencial. Na proposta aprovada, o ensino de Ciências da Natureza, que inclui a Física, volta a ser obrigatório, o que é positivo, uma vez que na Lei de 2017 constavam como disciplinas obrigatórias, nos três anos de ensino médio, apenas língua portuguesa e matemática. O conteúdo de Física continua indefinido. De qualquer maneira, estados e municípios terão que adequar novamente seus currículos, menos de três anos após a elaboração anterior.

Paralelamente às mudanças descritas acima, cabe destacar a iniciativa denominada “plataformização” do ensino que vem acontecendo nas escolas públicas de alguns estados brasileiros. O que é plataformização? Algumas secretarias de educação estaduais decidiram que é de sua responsabilidade a elaboração de cada aula de cada professor da rede pública. Por exemplo, a Secretaria de Educação do estado de São Paulo preparou, em alguns meses, todas as aulas de todas as matérias, desde o 1º ano do Ensino Fundamental até o último ano do Ensino Médio. No caso de São Paulo, essas aulas estão disponíveis para os professores na plataforma Centro de Mídia4 da Secretaria de Educação, em formato “powerpoint”, e devem obrigatoriamente ser usadas pelos docentes. A cada aula, o docente informa a Seduc-SP, que abre um formulário para ser respondido pelos estudantes. Curiosamente, não há informação pública a respeito na página da Secretaria de Educação de São Paulo5. Outros estados que já seguem esse modelo são o Paraná e Goiás. Há propostas de estender para outros municípios e estados. Uma consequência importante da “plataformização” é a de retomar o “currículo à prova de professor, nos quais a qualidade do conhecimento ensinado deve ser garantida pelo material distribuído aos alunos”6, uma proposta que vendo sendo contestada por grande parte da comunidade dos pesquisadores em educação nas universidades7. A substituição de professores de Física, também, por aulas de “powerpoint” prontas, idênticas e obrigatórias, desenvolvidas às pressas por autores não identificados associados às Secretarias de Educação Estaduais, contraria a experiência de qualquer um de nós, seja como professor, seja como aluno. Uma reflexão interessante a respeito é o editorial da Science8 publicado em 2016, que defende que o professor tem papel central no sucesso das reformas educacionais.

As transformações descritas acima estão alterando significativamente o ensino de Física que ocorre no Ensino Médio e acarretam necessariamente alteração da formação em Ciências dos jovens brasileiros. A comunidade científica pode ser surpreendida com a dificuldade de renovação de seus quadros em prazos relativamente curtos.

Uma pergunta se impõe: houve participação (institucional) das universidades brasileiras e das instituições científicas? Por participação institucional, entende-se: essas instituições foram convidadas e ouvidas pelo Conselho Nacional de Educação? essas instituições buscaram participar da discussão?

São as universidades que formam professores para a educação básica. São as sociedades científicas que zelam pelo ensino de ciências no país.

Outros atores se envolveram na elaboração da BNCC. De acordo com Tarlau e Moeller, em artigo de 2020 cujo subtítulo é “Como uma fundação privada estabeleceu a BCC no Brasil”9, organizações ligadas a grandes empresas tiveram papel relevante. A participação de empresas poderia ser benvinda. No entanto, cabe observar que a Fundação Lemann10, que atuou na assessoria do MEC, criou centros de pesquisa sobre a Educação Brasileira associados a universidades norte-americanas, como o Lemann Center for Educational Entrepreneurship and Innovation in Brazil11, junto à Graduate School of Education de Stanford. A colaboração científica entre brasileiros e pesquisadores de outros países pode ser extremamente prolífica. Mas talvez devamos nos perguntar por que somente centros de pesquisa norte-americanos estiveram envolvidos com a construção da BNCC.

Cabe repetir o mencionado anteriormente: nos últimos sete anos, vem desenrolando-se um processo que vai alterar profundamente a formação em ciências dos jovens brasileiros. Em que direção? A comunidade científica pode ser surpreendida pela dificuldade de renovação dos seus quadros em prazo relativamente curto. A comunidade científica está disposta a arcar com as responsabilidades de um possível fracasso?

Considerando as responsabilidades das sociedades científicas perante a educação brasileira, pensamos ser urgente que os cientistas brasileiros se envolvam nesse processo e busquem uma participação efetiva e democrática na definição da política de educação nacional.

Grupo de Trabalho de Acompanhamento do Ensino de Física no Ensino Médio

  • José David M. Viana – UnB
  • José Fernandes e Lima – UFS
  • Luis Carlos Crispino – UFPA
  • Marta Barroso – UFRJ
  • Vera Bohomoletz Henriques – USP

Referências:

  1. http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%2013.4152017?OpenDocument acesso em 18/junho/2024
  2. http://portal.mec.gov.br/docman/abril-2018-pdf/85121-bncc-ensino-medio/file acesso em 18/06/2024
  3. https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-bicamerais/-/ver/pl-52302023 acesso em 18/06/2024
  4. https://repositorio.educacao.sp.gov.br/ acesso em 23/06/2024
  5. https://www.educacao.sp.gov.br/ acesso em 18/06/2024
  6. https://doi.org/10.1590/S0102-25551997000100011 acesso em 23/06/2024
  7. Giroux, Henry A. “Teachers as transformative intellectuals.” Thinking about schools. Routledge, 2018. 183-189.
  8. https://www.science.org/doi/full/10.1126/science.aaf2001 acesso em 18/06/2024
  9. Tarlau, R., & Moeller, K. (2019) “Philanthropizing Consent: How a Private Foundation Pushed through National Learning Standards in Brazil.” Journal of Education Policy, 35(3), 337-366; “O CONSENSO POR FILANTROPIA: Como uma fundação privada estabeleceu a BNCC no Brasil”, Currículo sem Fronteiras, v. 20, n. 2, p. 553-603, maio/ago. 2020; ISSN 1645-1384 (online); http://dx.doi.org/10.35786/16451384.v20.n2.11 – acesso em 04/07/2024
  10. https://fundacaolemann.org.br/en acesso em 18/06/2024 11. https://lemanncenter.stanford.edu/home acesso em 18/06/2024
  11. https://lemanncenter.stanford.edu/home acesso em 18/06/2024