César Lattes em sala de aula em imagem do documentário Homenagem do CNPq ao Centenário de César Lattes e ao Dia do Físico do CNPq
César Lattes em sala de aula em imagem do documentário Homenagem do CNPq ao Centenário de César Lattes e ao Dia do Físico do CNPq

Foram duas cientistas as primeiras a publicar um estudo pelo recém-criado CBPF na década de 1950, estimuladas por um dos pais da física de partículas, cuja área de atuação motivou direta ou indiretamente outras mulheres a trilharem esse caminho científico.

Após participar da pesquisa que confirmou a existência do méson pi (hoje chamado de píon) proveniente dos raios cósmicos na Bolívia, em 1947, e após a detecção dessas partículas artificialmente nos Estados Unidos, o físico brasileiro César Lattes poderia ter seguido tranquilamente toda uma carreira em instituições no exterior. Mas, para um dos pais da física de partículas, era preciso promover o desenvolvimento da ciência no Brasil, movimento esse que também impulsionou o protagonismo feminino na ciência nacional. Os cem anos de nascimento dessa grande personalidade serão comemorados no simpósio “Dos Raios Cósmicos aos Aceleradores de Partículas”, entre 1 a 3 de julho de 2024, no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP).

“Naquele tempo, ninguém ia para lá fazer carreira (no exterior). Ninguém queria ficar lá. A gente pensava, digamos em linguagem um pouco patriótica, em melhorar o Brasil”, diz Lattes em depoimento citado por Ana Maria Ribeiro de Andrade no livro “Físicos, Mésons e Política – A Dinâmica da Ciência na Sociedade”. A busca pela industrialização do Brasil e interesses diversos no âmago da sociedade brasileira após a Segunda Guerra Mundial, especialmente no uso da energia atômica para a geração de energia e para interesses de defesa nacional, no caso de setores militares, fizeram de Lattes um ícone nacional que dinamizou a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), em 1949, e do CNPq em 1951.

Mas havia diversos atores políticos, militares e acadêmicos diretamente interessados nesse processo de desenvolvimento científico do País, que não se restringia ao universo masculino. Entre as mulheres estava a cientista Elisa Frota-Pessoa, a segunda mulher a se formar em Física no País, em 1942. Num primeiro momento, Lattes enquanto diretor científico do CBPF, estimulou Elisa no estudo de “chapas de emulsão nuclear expostas a prótons de 400 MeV no sincrocíclotron do Radiation Laboratory of Berkeley, com mésons pi lentos, positivos e negativos, e outras interações de nêutrons”, escreve Ana Maria.

Em parceria com a cientista Neusa Margem Amato, Elisa analisou com sucesso chapas com mésons positivos buscando determinar o seu esquema de desintegração. E ambas entraram para a história do recém-criado CBPF: publicaram o estudo “Sobre a desintegração do méson pesado positivo” em 1950, na revista Anais da Academia Brasileira. “Este foi o primeiro de uma série de trabalhos de pesquisa, na linha do método ionográfico, que teve continuidade com Hervásio de Carvalho”, escreve Ana Maria em seu livro.

Família Científica

A participação das mulheres na Física é ainda baixa no Brasil, mas tanto a área de estudo inaugurada por Lattes como a sua atuação como professor estimularam e continuaram a incentivar mulheres na ciência no País. A física Carola Dobrigkeit Chinellato, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo, pode ser considerada “filha científica” de Lattes. Hoje Carola é líder na participação brasileira no Pierre Auger, um dos maiores observatórios de raios cósmicos do mundo, localizado na Argentina.

Carola e Lattes foram amigos e atuaram em parceria na Unicamp (Crédito: Jornal da Unicamp)
Carola e Lattes foram amigos e atuaram em parceria na Unicamp (Crédito: Jornal da Unicamp)

“Ele tinha uma inteligência brilhante, era de fato fora de série. A sua cultura geral, não só em Física, mas também sobre outros assuntos, como em literatura e história geral, era espetacular”, lembra Carola, que teve o primeiro contato com Lattes em 1972, quando ele foi seu professor na graduação da Unicamp em aulas de “Estrutura da Matéria”, uma disciplina que introduz para os alunos a Física Moderna. “Eu não preciso dizer para você que a minha turma ficava prestando a máxima atenção, porque a gente, para começo de conversa, se sentiu muito importante de ter aula com ele”, diz a cientista. Em artigo publicado em 2005 no Jornal da Unicamp, ano da morte do cientista, Carola escreveu suas memórias comoventes e bem-humoradas com o professor Lattes, que durante as aulas chegava a levar com ele o seu cão. “Era o cachorro que mais ouvia de Física que conhecíamos. Até ele ficava prestando a maior atenção!”, escreveu Carola à época. “Agora, o professor Lattes se foi. Com certeza aqueles que, como eu, tiveram a oportunidade e o privilégio de tê-lo conhecido, o guardarão na memória. Seus ensinamentos serão passados adiante para a próxima geração por meio de nós, seus ex-alunos. Assim, o ciclo se fechará e a missão do professor Lattes poderá ser considerada cumprida se lembrarmos dos seus ensinamentos e soubermos dar continuidade às lições do seu exemplo.”

Carola ainda teve a honra de ser convidada por Lattes para ser instrutora, o que seria o primeiro nível do magistério superior, o Magistério Superior 1 (MS1), em janeiro de 1974. “Mas aí veio com uma pitada de sal, porque ele assistia às minhas aulas. Bom, aí foi onde eu me formei na realidade, porque eu preparava até a vírgula. Preparava tudo direitinho. E dar aula com ele na sala era uma aventura para mim e para os alunos, porque eles riam, eles se divertiam.”

Lattes ainda orientou o doutorado de Carola. Por esta e outras, considera-se que Lattes espalhou “filhos”, “netos” e “bisnetos” pela ciência brasileira. A Revista Pesquisa Fapesp, inclusive, encomendou uma pesquisa ao cientista da computação Jesús Mena-Chaldo, da Universidade Federal do ABC (UFABC), a partir dos dados da Plataforma Lattes, base de currículos dos cientistas do País assim batizada em 1999 em homenagem ao cientista brasileiro. Nessa pesquisa, Mena-Chaldo encontrou nada menos que 7 filhos, 98 netos, 304 bisnetos, 347 trinetos, 86 tetranetos e 9 pentanetos.

A astrofísica Rita de Cássia dos Anjos, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), campus Palotina, brinca que é bisneta de Lattes. Isso porque a física Carola orientou a tese do físico da USP de São Carlos, Luiz Vitor de Souza Filho, presidente do Comitê Científico do CTA, o experimento científico de grande porte que estudará os raios gama e os raios cósmicos. Este, por sua vez, orientou Rita de Cássia, que se especializou no estudo das origens dos raios cósmicos.

Ela lembra que, apesar de a física de partículas ter caminhado para experimentos como o LHC, o exemplo de Lattes em buscar respostas diretamente da natureza ainda está muito presente. Os raios cósmicos são partículas provenientes de núcleos de elementos químicos diversos expelidos por grande força de galáxias de núcleos ativos que, quando chegam à Terra, chocam-se com o oxigênio e nitrogênio da atmosfera gerando um chuveiro de partículas elementares, entre elas, os mésons pi. Mas ainda não há um acelerador de partículas capaz de gerar um evento tão energético quanto os raios cósmicos.

E, além disso, o estudo da origem desses raios levou à criação da astrofísica multimensageira, que investiga sinais de emissão de raios gama e ondas gravitacionais que estão associadas a eventos que geram também raios cósmicos. “Eu preciso colocar o observatório lá fora pra eu conseguir olhar o Universo, para entender o que ele está querendo me dizer. E eu acho isso muito bonito. Eu ainda não consigo reproduzir isso numa sala fechada, eu preciso olhar o céu. É muito belo o estudo das partículas de altas energias”, diz Rita.

Carola lembra que os aceleradores de partículas são muito úteis, pois podem realizar diversas colisões repetidas, para se descobrir partículas elementares, mas sem dúvida isso não tira a importância da observação dos elementos gerados diretamente pela natureza, hoje conhecidos como “astropartículas”.

Irreverência do mestre

Além de muito inteligente, Lattes também era muitas vezes irreverente. “César Lattes foi e continua sendo um dos cientistas mais importantes do Brasil não só na minha área de atuação, mas de todas em geral”, afirma Emico Okuno, do Laboratório de Dosimetria das Radiações e Física Médica do Departamento de Física Nuclear do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP).

Lattes convocou alunos da USP para provar que Einstein estava errado, foi pegar uma anotação e nunca mais voltou.
Lattes convocou alunos da USP para provar que Einstein estava errado, foi pegar uma anotação e nunca mais voltou.

“César Lattes influenciou não só a minha carreira, mas de muitos que tiveram a chance de trabalhar com ele”, diz Emico, que trabalhou com o físico brasileiro durante a estadia de Lattes no Instituto de Física da USP, de 1963 a 1967. “O nome dele abria todas as portas. Quando ele estava bem, trabalhava muito, comendo bananas. Um dia, a bibliotecária do grupo veio assustada nos dizendo que Lattes havia colocado todos os livros das estantes no chão. Ela colocou todos na estante de novo, mas, no dia seguinte, ele colocou todos no chão novamente, dizendo que a classificação estava errada”, lembra Emico, revelando um toque de excentricidade do gênio.

Débora Peres Menezes, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), presenciou uma dessas cenas. Na década de 1980, quando ela estava no primeiro ano do curso de Física na USP, Lattes passou de classe em classe convocando os alunos ao auditório porque iria provar que Albert Einstein estava errado. Há uma foto histórica inclusive do auditório lotado, diante de Lattes, que preenchia o quadro negro de cálculos. “E aí ele disse assim: ‘esqueci uma anotação na minha sala. Eu já volto’. E não voltou até hoje”, conta Débora, que ocupa hoje a Diretoria de Análise de Resultados e Soluções Digitais (DASD) do CNPq.

Débora lembra que sua opção pela Física não se deu diretamente pela influência de Lattes, especialmente porque foi muito depois de formada que começou a estudar o papel de partículas elementares em estrelas de nêutrons, mas considera que o físico brasileiro influenciou indiretamente muita gente. Em primeiro lugar, sua atuação impulsionou o desenvolvimento da física de partículas não apenas no Brasil, mas no mundo. A sua descoberta levou a questionamentos mais profundos que deram origens à proposta de existência dos quarks e a busca pela criação de experimentos com aceleradores de partículas para se aprofundar nos mistérios das partículas elementares. “Sem dúvida era uma pessoa que influenciou indiretamente a vida de muita gente. Eu, por exemplo, estou aqui trabalhando no CNPq, que foi fundado graças às ações do César Lattes.”

(Colaborou Roger Marzochi)