A humanidade perdeu uma das mais influentes cientistas da física da matéria condensada nas últimas décadas. Mildred Spiewak Dresselhaus nasceu no Brooklyn e teve uma infância pobre no Bronx. Seus estudos de música e violino lhe propiciaram uma bolsa para estudar no Hunter College, em NY, onde se formou em 1951. Em seguida ela ganhou uma bolsa para estudar na Universidade de Cambridge, Inglaterra, quando se iniciou na Física. Ela se doutorou em 1958 na Universidade de Chicago, onde foi aluna de Enrico Fermi. O início de sua carreira foi marcado por dificuldades em encontrar uma universidade para trabalhar, em um ambiente que era essencialmente dominado por homens. Depois de alguns insucessos, Millie foi acolhida no MIT em 1960, onde trabalhou até 10 dias antes de sua morte.

Sua carreira foi marcada pelo pioneirismo. As contribuições seminais no entendimento da estrutura eletrônica do grafite utilizando experimentos de magneto-óptica na década de 60 projetaram Millie na física da matéria condensada.  O interesse pelo entendimento das propriedades dos semimetais a fizeram também trabalhar com materiais de bismuto.

Boston 2010. Simpósio de Comemoração do 80o aniversário de Millie. Maurício Terrones, Ado Jório, Gene Dresselhaus, Millie Dresselhaus, Antonio Gomes Souza Filho, Marcos A. Pimenta

Nas décadas seguintes Millie contribuiu para a compreensão das propriedades eletrônicas e ópticas de materiais de grafite, como os compostos de intercalação de grafite e fibras de carbono, fulerenos, nanotubos de carbono, grafeno, e nos últimos anos seus trabalhos foram na área de diferentes tipos de materiais bidimensionais. Suas contribuições na física desses materiais estabeleceram os fundamentos que até hoje são amplamente utilizados em áreas de fronteira na física da matéria condensada. O pioneirismo de Millie no desenvolvimento da ciência dos materiais carbonosos lhe rendeu a admiração e o reconhecimento internacional da comunidade, que então lhe conferiu carinhosamente o título de “rainha do carbono”. Além de toda sua contribuição para ciência do carbono, seus trabalhos com heteroestruturas de bismuto são hoje de grande importância na física dos isolantes topológicos e dos materiais termo-elétricos.

Millie recebeu 30 doutorados honorários de várias instituições mundiais e é afiliada às mais prestigiadas academias de ciência e engenharia do mundo.  Ela foi presidente da APS (American Physical Society) e da AAAS (American Association for the Advancement of Science) e dirigiu o Departamento de Energia (DOE).  Recebeu diversas honrarias de grande prestígio, merecendo destaque os Prêmios – Kavli 2012 de Nanociência, a “Medal of Freedom”, maior homenagem do governo americano a civis, a “Medal of Science” dada aos maiores cientistas do país, e a “Medal of Honor” da IEEE por sua liderança e contribuições em vários campos da ciência e engenharia.

As dificuldades enfrentadas na carreira impulsionaram Millie a atuar nas questões de gênero, e suas ações no MIT rapidamente ganharam projeção internacional. Várias instituições adotaram medidas em favor de igualar as condições de trabalho e oportunidades de carreira científica para as mulheres. Em todos os cargos ocupados por Millie ao longo de sua carreira, esse aspecto esteve sempre relacionado à sua atuação. Ela coordenou várias comissões nacionais encarregadas de estimular e dar suporte às mulheres nas áreas de física e engenharia. Os estudos e relatórios gerados são até hoje usados como referências para políticas e ações nesse setor.

Millie contribuiu significativamente para o desenvolvimento da física no Brasil iniciando na década de 70, quando veio ministrar um curso na Unicamp. A partir do final da década de 90, ela acolheu vários pesquisadores, pós-docs e estudantes brasileiros de diferentes instituições, e os iniciou na nanociência do carbono. Nos últimos anos ela visitou o Brasil inúmeras vezes, em várias missões de colaboração na UFMG e na UFC, participando de conferências, bancas de tese e missões científicas. Millie era membro correspondente da Academia Brasileira de Ciências desde 1976.

Millie foi uma cientista brilhante, mas acima de tudo um ser humano incrível, e como professora e orientadora, inspiradora. Ela sempre estava disponível para auxiliar e dava ótimos conselhos. Por trás de pilhas de papel e livros na sua mesa, sempre aparecia Millie, que com voz e sorriso característicos pronunciava um convidativo e acolhedor “hi there!”; mesmo estando sempre com uma quantidade enorme de estudos, artigos, reports, cartas de recomendação para revisar. A atenção e dedicação de Millie  aos trabalhos de pesquisa dos estudantes e pós-docs eram impressionantes, e sempre tratados como uma prioridade.

Millie faleceu com 86 anos deixando o esposo e colaborador Gene Dresselhaus, os filhos Marianne, Carl, Paul e Eliot, e cinco netos. Ela faria uma apresentação com o sumário da conferência NT17, que ocorrerá em Belo Horizonte de 25 a 30 de junho próximo (http://nt17.org), mas o destino nos deixou apenas a possibilidade de um memorial; momento em que a comunidade internacional celebrará a brilhante trajetória científica e humana de uma estrela do seu tempo!

Entrevista com Millie MIT 150th
https://www.youtube.com/watch?v=nQRc9W5hFQ4

Antonio Gomes Souza Filho
Ado Jório
Marcos A. Pimenta