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Curso stricto sensu criado com apoio da SBF aproxima docente do Ensino Básico da Física Contemporânea e incentiva a aplicação inovadora do conhecimento em sala de aula

Roger Marzochi

Para ensinar as Leis da Termodinâmica, a professora de Física do Ensino Médio de escola pública Raysa Zurra Saraiva construiu um Motor de Stirling com seus alunos em Tefé, município do Amazonas com 59 mil habitantes. Inventado em 1816 por Robert Stirling, a engenhoca funciona a partir de uma combustão externa que aquece o ar que, por sua vez, movimenta pistões, como um motor de carro.  “Meus alunos me ajudaram a fazer a máquina. E deu um trabalho danado, porque esse motor tem que ter vedação perfeita, pois se o ar escapar, ele não funciona. E, com isso, meus alunos perceberam que fazer experimento científico não é tão simples quanto parece. O importante é não desistir”, aconselha. 

A inspiração de Raysa para aplicar em sala de aula doses de curiosidade científica e novas metodologias de ensino nasceu do Mestrado Nacional Profissional em Ensino de Física (MNPEF), um programa de pós-graduação stricto sensu desenvolvido  pela Sociedade Brasileira de Física (SBF) em parceria com a Coordenação de Aperfeiçoamentode Pessoal de Nível Superior (Capes), que completa em 2023 dez anos de existência. Em julho, essa marca será comemorada na Universidade de Brasília (UNB) entre os dias 17 a 21, durante o 3º Encontro do Mestrado Nacional Profissional de Ensino em Física, evento que ocorrerá junto com a 15ª Conferência Interamericana de Ensino de Física, com o tema “Educação em Física para a Construção da Cidadania”.

E Raysa, que foi a primeira mulher a se formar em Física na Universidade Estadual do Amazonas (UEA) em Tefé em 2011, fez parte da primeira turma do MNPEF, com aulas em Manaus, aos finais de semana, na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e no Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM). Em linha reta, a distância entre Tefé e a capital do Estado é de 522 km. As estradas, no entanto, são os rios. De lancha, a viagem demora 16 horas; de barco, três dias.

Para continuar dando aula na escola em Tefé, uma das condições para cursar o MNPEF, a professora fechou um pacote com uma companhia aérea para vencer distâncias. “Eu pegava o voo na sexta-feira, saia do aeroporto direto para a sala de aula. E, quando voltava, saia do aeroporto direto para a escola na qual eu ministrava aula”, lembra Raysa. O esforço lhe ajudou não apenas em sala de aula, mas a levou a apresentar a sua dissertação sobre esse experimento para públicos distintos em locais distantes como São Paulo e Brasília.

“A ideia inicial era justamente criar um programa stricto sensu que pudesse trazer para a universidade os professores da educação básica que atuam na ponta da educação cientifica, para que eles pudessem rever sua formação em conteúdos tanto de ensino de física quanto em metodologias de aprendizagem. A SBF teve compreensão que era preciso fazer algo para colaborar com quem atua na educaçãobásica”, explica Iramaia Jorge Cabral de Paulo, professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e coordenadora da Comissão de Pós-Graduação Nacional (CPG-Nacional), responsável pelo MNPEF.

Iramaia avalia que o curso é um exemplo de sucesso e tem um futuro promissor, como explicou em artigo publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física, em 2021. E, em entrevista ao Boletim da SBF, ela reforça essa posição. “Contamos com 3.580 professores da educação básica formados ou em formação. Em média, a cada ano, cerca de 600 vagas são abertas”, diz Iramaia, para quem esses não são números desprezíveis. 

Usando dados do artigo “O professor de Física na escola pública estadual brasileira: desigualdades reveladas pelo Censo Escolar de 2018”, publicado por Matheus Monteiro Nascimento em 2020 na Revista Brasileira de Ensino de Física, Iramaia explica os motivos do desempenho do MNPEF. De acordo com o Censo, há no País 2 milhões de professores em atividade. Destes, 44.706 lecionam Física nas escolas públicas estaduais, sendo que apenas 9 mil são licenciados em Física. “Entre formados e em processo de formação, os 3.580 professores do MNPEF representam um terço desses 9 mil. É um trabalho que eu considero de bastante sucesso. E que a tendência é que a gente possa continuar com essa formação dentro dessa perspectiva com foco em Física e em seu aprendizado”, afirma a coordenadora.

O curso não é voltado apenas para egressos da graduação em Física, mas também biólogos, matemáticos, engenheiros desde que estejam ministrando a disciplina na Educação Básica. Isso se explica porque o curso, que tem disciplinas de Física de ponta e de metodologias de ensino, exige que o aluno crie um produto educacional, que pode ser um aplicativo (APP), um experimento ou uma sequência didática em sala de aula.

“Nossa preocupação está em ajudar o professor a compreender a Física de ponta que acontece na academia para entender os avanços da tecnologia com a profundidade que o permita fazer a transposição para os alunos. O que o professor faz muitas vezes é repetir a Física que ele aprendeu na Educação Básica. Ele termina a licenciatura e não se sente apto a transitar por essa Física mais contemporânea, essa ciência que acontece o tempo todo nas academias e que está sendo transformada em tecnologia, da qual nós somos usuários”, diz Iramaia.

Kleber Gonçalves Cavalcante, 41 anos, concorda. Formado em Física pela PUC de Goiás em 2007, ele leciona Física no Ensino Médio desde 2004. Hoje mora em Corumbá (MS) e viaja toda sexta-feira 645 km até Dourados para cursar o primeiro ano do MNPEF na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). “Eu acho que o principal é a gente investir na formação do docente. A gente está vendo corpo docente chegando com bagagem muito pequena para lecionar para a criançada hoje nos Ensinos Fundamental e Médio. Existe também divergência grande com relação a conteúdos entre as escolas públicas e privadas, principalmente após a Reforma do Ensino Médio. Há uma carga horária de Física muito pequena dentro das escolas hoje”, diz ele, que está em vias de aprimorar a sua proposta de produto educacional para o MNPEF.

A aplicação desse produto educacional e avaliação do nível de aprendizagem dos alunos deverão estar na dissertação que deve ser apresentada ao final do mestrado. As aulas ocorrem em 60 pólos do MNPEF em todo o País, locados dentro de universidades públicas e institutos federais, de preferência no início da semana ou aos fins de semana, para permitir que o professor continue trabalhando enquanto estuda. “Um dos nossos objetivos após dez anos é ampliar o diálogo com as Secretarias Estaduais de Ensino. A maioria dos nossos professores  atua na rede pública e hoje sentimos certa dificuldade em conseguir a liberação parcial da carga horária para que eles se dediquem ao mestrado. Na verdade o que demandamos das secretariais  é um rearranjo da distribuição de encargos, para que eles possam ficar liberados nos dias de aula do mestrado”, diz a coordenadora.

Para Iramaia, o mestrado ajuda o professor também a se reposicionar na sala de aula, em um momento no qual os alunos estão sendo bombardeados pela tecnologia da informação. Raysa, de Tefé, por exemplo, não dá aulas só de Física e tem sob sua responsabilidade 11 turmas com um total de 400 alunos. “Enquanto professor, a gente nunca para de estudar. Vão surgindo novas tecnologias e os alunos têm acesso à web, é importante estar atento à curiosidade deles. E o mestrado é uma forma de ter acesso ao meio acadêmico. Ele vem para renovar o conhecimento, serve para abrir a mente. Não que a forma tradicional de ensinar está errada, mas o mestrado mostra outras formas que podem ser até melhores”, diz Raysa, aos 32 anos.

“O professor tem que ser trazido para o centro do processo. Precisamos dar a ele meios de apropriação e/ou aprofundamento nos conteúdos e em metodologias inovadoras para a Física e seu ensino. As pesquisas básicas em ensino de Física resultam em um arcabouço robusto de conhecimento, passando por questões curriculares, concepções alternativas e mudanças conceituais, representações mentais e microetnografia. Todo esse conhecimento subsidia a pesquisa aplicada que fazemos, considerando que o mais importante é o empoderamento do professor como Físico-Professor”, conclui Iramaia.