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Brasileiros desenvolveram a primeira armadilha de Penning da América do Sul, que possibilitará no futuro estudos sobre antimatéria, formação molecular em meio interestelar, informação quântica e homoquiralidade das moléculas biológicas

Roger Marzochi

Vitais para o meio ambiente e a vida biológica, os íons são átomos ou moléculas que cedem ou recebem elétrons para além de sua configuração química natural. Aqueles que recebem elétrons são chamados de ânions (carga negativa); já os que doam, cátions (carga positiva). Essa troca de elétrons colabora desde o funcionamento de ecossistemas a transmissão de sinais nervosos no corpo humano. Um estudo do Laboratório de Super-Espectroscopia (Laser) do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desenvolveu uma técnica inovadora no mundo que aprisiona íons a baixas temperaturas. A produção de ânions frios, para qual inexistia uma técnica direta, é especialmente desafiadora e interessante.

O estudo, publicado no dia 23 de maio na Communications Physics, tem ampla aplicação na Física Básica e Aplicada. O trabalho teve o apoio da Fundação de Amparo à Ciência do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). A captura desses íons é feita por meio de uma máquina chamada Armadilha de Penning, batizada em homenagem ao físico sueco Frans Michel Penning. Esse é um sistema no qual se utiliza campos magnéticose elétricos estáticos para confinar íons em um pequeno espaço, pelo tempo necessário para que se possam realizar medições. Essa máquina do Rio, desenvolvida exclusivamente com tecnologia brasileira, é a primeira da América Latina. E, embora seja comum em laboratórios em outros países, a técnica dos cientistas do Laser/UFRJ de formação dos ânions e cátions frios é inovadora, sendo chamada pelos cientistas de Sublimação de Matriz de Isolamento (MISu, acrônimo em inglês).

“É a invenção de uma nova técnica. Não é só porque essa é a primeira Armadilha de Penning do Brasil e da América do Sul. Mas o domínio da tecnologia abre diversas oportunidades de aplicação. Essa técnica que inventamos de gerar ânions de hidrogênio é inédita, não se tinha nenhuma fonte de hidrogênio assim em baixa energia. Isso abre enorme gama de aplicações seja em Física Fundamental a estudos que nem imaginamos”, explica o físico Claudio Lenz Cesar, um dos líderes da pesquisa e que assina o artigo junto com os cientistas Levi Oliveira de Araújo Azevedo (doutorando), Rodolfo de Jesus Costa (aluno do programa de mestrado aplicado multidisciplinar), Álvaro Nunes de Oliveira (INMETRO/IF-UFRJ), e os professores Rodrigo Lage Sacramento, Daniel de Miranda Silveira e Wania Wolff.

“Ter construído essa armadilha e desenvolvido a técnica no Brasil é de grande importância para a ciência brasileira porque mostra que pode servir de espelho ou de exemplo pra jovens estudantes que estão em graduação em Física, Engenharia, Química. Elesterão um exemplo prático de uma tecnologia que tem grande relevância para a ciência mundial”, diz Azevedo, de 28 anos.

No trabalho, os pesquisadores conseguiram confinar ânions na armadilha a 25 mili-elétron Volt (meV), uma energia que representa o movimento das moléculas e átomos em temperatura ambiente, de cerca de 25º C. Lenz Cesar quer aprimorar esse sistema para conseguir energias ainda mais baixas, menores que 1 meV, em busca de simular situações de temperaturas criogênicas. Lenz Cesar explica que um dos motivos para se estudar íons a baixas temperaturas é o de simular o ambiente interestelar para o estudo, por exemplo, da formação molecular e a chamada homoquiralidade, ou seja, a predominantemente de um único tipo de configuração molecular nos organismos vivos na Terra usada em suas estruturas e processos biológicos. “De onde veio que toda a parte biológica na Terra ‘escolheu’ certa quiralidade? Não se sabe a origem disso”, diz Lenz Cesar.

A produção dos ânions pode colaborar também nos estudo sobre a massa de neutrino. Já a produção de elétrons polarizados para estudos ligados à quiralidade bem como informação quântica. A principal motivação é no estudo da antimatéria. O Laser/UFRJ colabora com o experimento ALPHA da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), na Suíça, que busca testar em alta precisão a teoria da simetria entre antimatéria e matéria. O experimento ALPHA tem uma Armadilha de Penning para gerar anti-hidrogênio. Os dados captados na Suíça são comparados com dados de hidrogênio gerados em outro laboratório, de um laureado Nobel na Alemanha.

Lenz Cesar espera levar a Armadilha de Penning desenvolvida no Rio para a Suíça para conseguir colocar hidrogênio e anti-hidrogênio confinados no mesmo ambiente para aprimorar as medidas. “Isso vai nos permitir eliminar boa parte das incertezas, os chamados efeitos sistemáticos”, diz o físico, que colabora o CERN em projetos assim desde a década de 1990.

Embora o projeto, de sua concepção até a publicação, tenha ocorrido em apenas três anos, Lenz Cesar explica que isso foi uma exceção à regra. “As pessoas desacreditam que podemos fazer algo inédito desde a concepção”, afirma ele, que também alerta: “Estamos virando imediatistas. As pessoas querem tudo rápido. Nesse caso, por acaso, foram só três anos. Tempo muito curto para começar algo novo na ciência. Mas é fundamental que os mais jovens queiram encarar desafios maiores, não queiram entrar na ciência só para publicar no ano que vem. Que a publicação não seja o objetivo, mas sim uma consequência natural.”