A Kau me contactou no início de 2016. Num e-mail muito mais formal e mais educado do que os físicos costumam escrever, pediu para marcar um horário para ir na minha sala conversar sobre uma possível orientação. Ela então chegou numa cadeira de rodas elétrica, que era manobrada com um joystick, ao lado da Sionara, sua mãe. Disse-me que havia passado na seleção do mestrado e conseguido uma bolsa, mas nunca tinha estudado mecânica quântica. Nem estatística. Nem física nuclear. Nem eletromagnetismo. Mas nem precisava. Superação fazia parte do seu DNA. Um ano e meio depois, ela estava na minha sala quando vimos a sua classificação para a seleção do doutorado: tinha ficado em segundo lugar, com uma nota muito boa no Exame Unificado de Física. Lembro-me de tê-la visto se emocionar.
Eu a orientei no mestrado, doutorado, pós-doc, sempre em assuntos que versavam sobre estrelas de nêutrons descritas por diferentes modelos, alguns simples, outros muito complicados. Mas a verdadeira estrela era ela, que conduzia as pesquisas com um humor inglês, principalmente quando os programas computacionais davam muito trabalho. Publicamos 12 papers juntas, o último deles aceito 2 dias antes da sua morte, e um livro. Recentemente, ela me ajudava a dar pareceres quando meu tempo era escasso e o assunto a interessava.
Para a Kau e sua mãe, que a acompanhava onde fosse necessário e viabilizava todo o seu deslocamento, não havia dificuldades para nada, apesar da saúde frágil e das inúmeras barreiras impostas pela doença degenerativa progressiva: juntas foram a Coimbra para trabalhar por duas ocasiões, participaram de vários congressos nacionais e internacionais, viajaram o mundo.
No ano passado, Kau seguiu para mais um pós-doutorado, desta vez na pós-graduação em Física do ITA. Talvez ela não soubesse, mas foi referência para muitos estudantes de mestrado, doutorado e também para muitos professores, próximos ou não. No ITA, ela conseguiu se dedicar com a mesma intensidade de sempre, contribuindo ativamente para a elaboração de mais dois trabalhos, já submetidos.
A ciência brasileira perdeu uma cientista competente, resiliente, que tinha pressa de realizar seus sonhos. Seu exemplo de vida marcou e continuará marcando inúmeras pessoas, deixando um legado que ecoará por muito tempo entre aqueles que tiveram o privilégio de conhecê-la ou de acompanhar sua trajetória. A Kau era tão forte, que a sua fragilidade, muitas vezes, passava despercebida. Ela fará muita falta para a ciência brasileira e para todos que tiverem a sorte de trabalhar e conviver com ela!
por Débora Peres Menezes, com contribuições de Odilon Lourenço