Se você gosta de arte, poderá entender um pouco melhor uma pesquisa na fronteira da descoberta de novos materiais na chamada física da matéria condensada, um trabalho do qual participaram o brasileiro Vinicius Zampronio, à época do estudo pesquisador pós-doutor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e do cubano naturalizado brasileiro Alejandro Mendoza-Coto, professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Em parceria com cientistas italianos eles descobriram um estado do tipo “super-quasicristal”, um estado da matéria que une o conceito de supersólido, algo que além de ser rígido tem características de um superfluido, no qual os átomos se movem sem atrito; e a de quasicristal, peculiaridade que foi descoberta pela primeira vez em 1984, quando o químico Dan Shechtman observou estruturas atômicas ordenadas mas que careciam de periodicidade espacial, algo que a ciência acreditava ser impossível até então.

Vinicius Zampronio (dir) e Alejandro Mendoza-Coto (esq.)

“Sob o ponto de vista da ciência básica, nós não podemos neste caso fazer uso de um dos pilares da física do estado sólido, que é o teorema de Bloch, já que este depende da presença de periodicidade. Então, a gente começa a investigar como que é a física desses estados ordenados, mas não periódicos, como que é a mecânica quântica, quando um desses pilares da física do estado sólido não existe mais”, diz Zampronio, hoje na Universidade de Florença, na Itália.

“Estamos reportando a existência de novas fases da matéria. E isso sempre é uma questão que, para nós, Físicos que fazemos matéria condensada, tem uma importância significativa considerando que um dos objetivos fundamentais da Física hoje é o controle sobre a matéria, ou seja, a gente conseguir produzir estados que a natureza provavelmente sozinha não produziria”, completa Mendoza-Coto, em entrevista conjunta ao Boletim SBF a partir de Florença.

Além de representar um avanço na ciência básica, o estudo pode contribuir para a evolução, no futuro, da computação quântica. Os resultados estão no artigo “Exploring Quantum Phases of Dipolar Gases through Quasicrystalline Confinement”, publicado no dia 6 de novembro no periódico científico Physical Review Letters (PRL).

Mas que história é essa de super-quasicristal? Imagine uma obra de arte contemporânea na qual o artista cria uma estrutura igual a de caixas de ovos feita de metal e vidro cujos vales para encaixar as gemas estejam dispostos de forma ordenada mas não periódica, formando mandalas esquisitas. A instalação poderia incluir iluminação controlada, onde a luz interage de maneira não uniforme com as concavidades, projetando sombras e padrões imprevisíveis nas paredes ao redor. Sob as cavidades únicas, refletindo fragmentos imprevisíveis de luz e sombra, os ovos ficariam suspensos em resina, parecendo flutuar.

Os ovos, por assim dizer, seriam átomos de disprósio (Dy), aqueles com propriedades magnéticas mais fortes de toda a tabela periódica, cuja literatura já apresenta pesquisas sobre a formação de supersólidos. Ao contrário dos sólidos comuns, que têm uma estrutura cristalina fixa, um supersólido exibe simultaneamente propriedades de um sólido e de um superfluido — uma fase da matéria onde o líquido flui sem atrito. Essa característica inusitada desafia nossa intuição, pois combina rigidez com a capacidade de movimento perfeito em uma única fase.

Já a caixa de ovo seria o quasicristal, que confinaria os átomos em diferentes arranjos influenciados não apenas pelo seu magnetismo, mas também por um potencial externo: na realidade uma série de lasers que criam uma armadilha ótica.

Ilustração inspirada na metáfora de um superquasecristal.

“A luz se torna intensa em algumas áreas do espaço e pouco intensa em outras, devido à superposição das ondas de luz. Essa superposição cria interferência, e assim, nas áreas menos iluminadas, que são mais escuras, os átomos tendem a se acumular, enquanto nas áreas mais iluminadas, eles são repelidos. Dessa forma, no espaço, forma-se uma estrutura que lembra a disposição de ovos em uma cartela, com cada átomo ‘encaixado’ em seu próprio ponto preferido”, explica Mendoza-Coto. “A estrutura parece com aquelas mandalas, que a gente percebe que é um desenho que tem uma certa ordem, mas ao mesmo tempo nunca se repete nenhum pedaço da estrutura.”

O estudo também identificou que, além da estrutura de super-quasicristal, fases de “vidro de Bose” também existem para esse sistema. Essa seria um estado da matéria onde os átomos ficam presos em regiões específicas do potencial criado pela armadilha, como a armadilha não é periódica, os átomos nesta situação não conseguem se organizar em uma estrutura cristalina normal. Esse estado é particularmente interessante porque apesar de ser um estado onde não há superfluidez, globalmente falando, ela consegue existir em regiões localizadas da estrutura aperiódica da armadilha.

“Em determinado momento, percebemos que a rede (a caixa de ovos) é tão forte que acaba localizando demais os átomos nos sítios da rede e você perde essa coerência de fase, perde a superfluidez global no sistema. Mas a gente vê que o sistema ainda é compressível. Ele ainda apresenta algumas ‘piscinas’ de superfluido, em estruturas do quasicristal que lembram aneis. Esse comportamento é justamente uma das características do estado de vidro de Bose, que a gente observa quando a rede é suficientemente forte”, explica Zampronio.

O estudo é, por enquanto, teórico. Mas os cientistas brasileiros afirmam que a experiência é factível, o que seria um dos motivos pelos quais a PRL aceitou a publicação do artigo. “É realmente factível começar a fazer esse tipo de experimento com a tecnologia que a gente tem hoje”, afirma Mendoza-Coto.

A pesquisa tem implicações profundas para o estudo dos sistemas quânticos com interações de longo alcance. Com o uso de átomos de disprósio (Dy) e redes ópticas quase cristalinas, os pesquisadores demonstraram que é possível criar e estudar fases da matéria nunca antes observadas em laboratório. Esse trabalho abre caminho para investigações futuras sobre como ambientes aperiódicos influenciam estados quânticos complexos e como isso pode ser usado em tecnologias emergentes, como computação quântica e novos materiais com propriedades únicas.

(Colaborou Roger Marzochi)