Uma equipe de cientistas está explorando um fenômeno curioso na física chamado “efeito Mpemba quântico”. Esse efeito, que já foi observado em sistemas clássicos, refere-se à situação inesperada em que um sistema “mais quente” pode resfriar mais rápido do que um sistema “mais frio” ou temperatura ambiente. Esse fenômeno leva o nome de Erasto Mpemba, um adolescente no interior da Tanzânia apaixonado em fazer picolés que descobriu na prática esse efeito, defendendo-o até ser levado a sério. Agora, os pesquisadores estão examinando como esse efeito se manifesta em sistemas quânticos, utilizando ferramentas da termodinâmica fora de equilíbrio.
A investigação parte de uma ideia central: quando um sistema quântico está acoplado a um “banho térmico”, uma espécie de ambiente que troca calor com o sistema, ele tende a relaxar em direção ao equilíbrio. Isso significa que, com o tempo, o sistema e o ambiente se aproximam de uma temperatura comum. Para descrever como esses sistemas evoluem ao longo do tempo em contato com um banho térmico, os pesquisadores utilizaram os chamados mapas de Davies, equações que modelam essa dinâmica.
E uma jovem cientista, a professora pós-doutora Krissia Zawadzki, do Instituto de Física de São Carlos, da Universidade de São Paulo, participou desta investigação teórica, cujos resultados foram publicados no dia 4 de outubro de 2024 no artigo “Thermodynamics of the Quantum Mpemba Effect”, divulgado no periódico científico Physical Review Letters (PRL). A cientista assina o artigo em parceria com Mattia Moroder (Munich Center for Quantum Science and Technology – MCQST), Oisín Culhane (Trinity College Dublin) e John Goold (Trinity College Dublin e Trinity Quantum Alliance).
Ela explica que, desde meados de agosto do ano passado, muitos artigos começaram a debater o Efeito Mpemba Quântico, o que levou seu grupo de pesquisa a buscar interpretar o fenômeno do ponto de vista da termodinâmica quântica. A termodinâmica quântica é uma área que emergiu da necessidade de entender a conversão energética em escalas microscópicas, incluindo ainda a ideia de que informação quântica pode ser concebida como um recurso energético.
O que torna esse estudo interessante é que, quando o sistema quântico começa em um estado que possui “coerências” – isto é, características que refletem o comportamento de sobreposição quântica – e, em seguida, é transformado em um estado no qual essas coerências desaparecem (chamado pela cientista como um estado “diagonal” em termos de energia), o sistema pode, surpreendentemente, alcançar o equilíbrio mais rápido do que o esperado.
“Até então, nenhum trabalho com Mpemba tinha olhado para estados iniciais com coerência. Mostramos que a coerência é vantajosa justamente por ela se converter em uma energia livre fora do equilíbrio maior. Essa energia permite que o sistema consiga alcançar uma configuração privilegiada, um estado meta estável, que facilita a aceleração observada no Mpemba. A forma como propomos que essa conversão aconteça é aplicando uma transformação no sistema que vai eliminar essa coerência inicial. Essa transformação, na prática, deve ser engenhada a depender do experimento. Ela pode ser, por exemplo, um pulso eletromagnético. Após esse pulso, o sistema é chacoalhado e acessa o estado inicial de maior energia – o análogo da mistura de sorvete quente para o sistema quântico. De certa forma, poderíamos interpretar que a coerência ajuda a esquentar o sistema com essa transformação”, explica Krissia.
“É como se a coerência se convertesse em energia e te jogasse para um patamar de um estado que depois vai ter uma energia maior, é como se você tivesse aquecido, a coerência acaba também virando calor, porque é como se você tivesse uma temperatura morna inicialmente, aí a coerência acabou virando calor para você chegar mais rápido lá no estado mais frio”, exemplifica a cientista.
Para ocorrer essa aceleração o grupo estudou uma propriedade matemática do sistema conhecida como “gap espectral”, que é uma propriedade matemática que ajuda a entender a velocidade com que o sistema quântico alcança o equilíbrio, agindo como uma medida da diferença mínima de energia que controla essa evolução. Krissia explica que, em um sistema quântico realista, é preciso levar em conta tanto a parte que se pode medir e controlar, quanto os efeitos espúrios do ambiente, que provocam dissipação e não são facilmente controláveis experimentalmente.
“Esse modelo matemático é o análogo do Hamiltoniano em sistemas quânticos isolados para essa formulação dissipativa. Quanto temos um modelo Hamiltoniano, em geral buscamos escrevê-lo como uma matriz com autovalores e autovetores associados às energias e possíveis estados que o sistema pode estar. Esse conjunto dita a forma como o sistema vai evoluir, sua dinâmica. Basicamente, as energias aparecem como fases da evolução. Analogamente, o Liouvilliano, na forma matricial, dita a evolução dissipativa em termos de modos e fases – seus autovalores. Esses modos podem ser rápidos ou lentos, a depender de seus valores serem pequenos ou grandes, respectivamente. Modos lentos são autovetores do Liouvilliano associados a estas fases com valor pequeno. Elas irão retardar a dinâmica”, diz a cientista.
O estudo demonstra que é possível obter o efeito Mpemba quântico em sistemas controlados, usando uma transformação unitária, uma operação quântica que preserva as propriedades fundamentais do sistema, em estados iniciais específicos. O estudo sugere que esse efeito Mpemba pode ser verificado em exemplos simples com qubits, que são as menores unidades de informação quântica, mas esperam que possa um dia ser aplicado a sistemas com múltiplos qubits.
Sobre a influência do estudo na computação quântica e em outras áreas da tecnologia, Krissia busca relativizar as suas descobertas. “Soaria ambicioso demais da minha parte afirmar que a nossa proposta é revolucionária. Eu diria que é uma proposta teórica interessante que deve ser testada em plataformas experimentais. Pensando em aplicações, talvez essa proposta possa ser complementar a estratégias de controle quântico, que exigem que operações sejam executadas em escalas de tempo fixas. Em termodinâmica quântica, a proposta seria interessante para modelar máquinas térmicas ou dispositivos para explorar termoeletricidade mais realistas. Em computação quântica, onde os erros podem ser minimizados em três etapas – supressão, correção e mitigação, – a ideia da transformação do estado inicial poderia ser implementada na etapa de supressão, onde há controle sobre o hardware. Porém, eu não abusaria em dizer que essa proposta é a chave para o resfriamento quântico, que é um desafio importante para o desenvolvimento de algumas tecnologias quânticas”, avalia.
Mas é, sem dúvida, uma proposta interessante para o futuro da computação quântica, que teve a participação de uma mulher, que iniciou os estudos sobre eletricidade no Senai de Araraquara, a única menina da turma de 2004, até chegar a doutorado e pós-doutorados em universidades como a University of York (UK), Northeastern University (Boston, US), International Center for Theoretical Physics (ICTP-SAIFR), Royal Holloway University of London e Trinity College Dublin.
Para ela, a sociedade evoluiu, mas não é fácil ainda ser mulher em um ambiente dominado por preconceitos relacionados à gênero. “Às vezes é curioso pensar que, mesmo no ano de 2024, há algumas nuances na forma como o preconceito relacionado à gênero transborda inconscientemente na sociedade e na academia. Um incômodo pessoal genuíno é a quase ausência de colegas, meninas e mulheres, com as quais eu possa compartilhar questões do dia a dia, ou mesmo compartilhar experiências de situações de preconceito que sofremos no ambiente acadêmico. Às vezes, não somos respeitadas pelo nosso gênero em questões profissionais e pessoais. Nos vemos desqualificadas por puro preconceito. É muito difícil desconstruir esses preconceitos e, infelizmente, o impacto perverso deles para a nossa motivação é incontrolável.” Embora ainda haja tais preconceitos, é muito importante que mais mulheres possam trazer sua energia criativa para a física para ajudar a enxergar o que muitos ainda não conseguem ver.
(Colaborou Roger Marzochi)