Cientistas sofreram perseguições, demissões, aposentadorias compulsórias e José Leite Lopes chegou a deixar o Brasil por figurar em uma lista de personalidades a serem assassinadas pelo regime, revela artigo do pesquisador do MAST Alfredo Tiomno Tolmasquim na Revista Brasileira de Ensino de Física
Para driblar a caça aos “comunistas” empreendida pela Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964, os cientistas que criaram em 1949 o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) decidiram alçar à presidência do órgão personalidades que, a princípio, defendiam o desenvolvimento científico e tecnológico autônomo do Brasil, mas eram bem vistos aos olhos dos militares. A estratégia, pensada para evitar os expurgos que aconteciam em diversas universidades país afora, não deu certo. E o CBPF, que havia sido criado como uma instituição privada com doações individuais e fundos empresariais, chegou quase à extinção, contando em certo período com apenas três pesquisadores titulares.
Nem Cesar Lattes, considerado herói nacional pelas pesquisas que confirmaram a existência do méson-pi, nem o renomado cientista José Leite Lopes, escaparam às perseguições dos militares. Lopes, inclusive, fugiu do Brasil após descobrir que seu nome estava em uma lista de personalidades a serem assassinadas pelo regime militar. Essas são algumas das revelações que estão no artigo “O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas durante a ditadura civil-militar: resistências e acomodações”, publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física pelo pesquisador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), Alfredo Tiomno Tolmasquim.
“É interessante como o CBPF era visto como, entre aspas, um antro de comunistas. Por quê? Na verdade, nenhum deles tinha uma atividade político-partidária, mas eles tinham uma preocupação com o modelo de desenvolvimento do País. Naquela época, propor um desenvolvimento autônomo dos Estados Unidos, em que o Brasil não necessariamente precisasse ficar dependente da tecnologia americana, era muitas vezes considerado como um antiamericanismo”, diz o pesquisador, em entrevista ao Boletim SBF.
“O que eu achei mais interessante, que para mim foi até um pouco surpreendente ao levantar a documentação, foi verificar que muitos dos pesquisadores do CBPF eram monitorados desde a década de 1950, ou seja, quando não era ainda governo ditatorial. E isso foi perpassando depois pelos governos Juscelino, Jânio… Então mostra como havia um aparato de Estado para monitorar os cidadãos que eram considerados suspeitos ou contrários ao pensamento oficial e que funcionou independentemente dos próprios governos.“
Tolmasquim, que é sobrinho de Jayme Tiomno, um dos fundadores do CBPF, vai ainda lançar no Brasil até o fim do primeiro semestre de 2024 o livro “Entre partículas e buracos negros: Jayme Tiomno e a implantação da física no Brasil”, pela editora Livraria da Física, em parceria com o pesquisador alemão William Brewer. O livro fará parte das comemorações dos 75 anos do CPBF, que à época da ditadura, foi salvo pela escolha do general Macedo Soares, em 1974, para comandar o instituto. Soares, que já havia ocupado a presidência do órgão entre 1955 a 1963, possibilitou ao CBPF ser incorporado ao CNPq, o que deu sobrevida ao instituto. Para Tolmasquim, o CBPF realizou ao fim da ditadura aquilo que o governo brasileiro à época não conseguiu em decorrência da anistia. “Quando o diretor do CBPF faz, no final de 1979, uma sessão pública de reparação moral e reinício da colaboração, que é um reencontro de todos que foram demitidos, sofreram violências e saíram com o corpo de funcionários – houve um discurso muito emocionado do Tiomno relatando todas as perseguições que aconteceram – o CBPF estava caminhando no sentido de curar os traumas do passado e possibilitar a reintegração das pessoas. Esse processo de rever o passado, por mais doloroso que seja, é muito necessário.”
Leia a entrevista com o pesquisador:
É muito interessante perceber que os cientistas buscaram uma forma de driblar a repressão e, no fim, não teve jeito. Houve mesmo uma relação da nova direção com os militares?
O que eu achei mais interessante, que para mim foi até um pouco surpreendente ao levantar a documentação, foi verificar que muitos dos pesquisadores do CBPF eram monitorados desde a década de 1950, ou seja, quando não era ainda governo ditatorial. E isso foi perpassando depois pelos governos Juscelino, Jânio… Então mostra como havia um aparato de Estado para monitorar os cidadãos que eram considerados suspeitos ou contrários ao pensamento oficial e que funcionou independentemente dos próprios governos.
E percebi que vários membros do CBPF – inclusive o próprio César Lattes, que era uma espécie de herói nacional – que, para a criação do CBPF, tiveram apoio de vários militares, de empresários. Cesar Lattes chegou a receber do presidente da Federação das Indústrias recursos de um fundo de combate ao comunismo, sem saber. Só depois que ele ficou sabendo a origem dos recursos. Mas, enquanto isso acontecia, por outro lado, ele estava sendo monitorado pelos órgãos de segurança e pela polícia política.
O monitoramento de setores da população, já vem de antes, do período Getúlio Vargas. Talvez a partir do governo Dutra ele se torna mais sistematizado, organizado, em função da Guerra Fria, que dispara justamente nesse período pós-guerra. Isso também acontecia em outras áreas da ciência. Há estudos mostrando que, por exemplo, professores do Departamento de Parasitologia da USP eram monitorados por relacionar as doenças endêmicas à pobreza.
E, professor, além de tudo, o Darcy Ribeiro acabou dirigindo o CBPF, o que gerou ainda mais preocupação no governo…
É interessante como o CBPF era visto como, entre aspas, um antro de comunistas. Por quê? Na verdade, nenhum deles tinha uma atividade político-partidária, mas eles tinham uma preocupação com o modelo de desenvolvimento do país. Naquela época, propor um desenvolvimento científico e tecnológico autônomo dos Estados Unidos, em que o Brasil não necessariamente precisasse ficar dependente da tecnologia americana, era muitas vezes considerado como um antiamericanismo. Fora isso, havia uma disputa interna na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, onde estavam vários pesquisadores do CBPF e de onde saíram vários alunos que foram para o CBPF. Como queriam implantar na universidade o tempo integral, a pesquisa, acabar com o sistema de cátedras, ou sejam, propunham alterações na estrutura e prática, eram vistos como promotores de uma forma de subversão universitária. Evidentemente, não era uma subversão, mas uma forma de repensar o modelo universitário, o que vai acontecer depois de 1968 com a reforma do ensino universitário. Então eles não estavam propondo nada que fosse absurdo, até porque a reforma universitária foi implantada pelo governo militar.
Mas isso era visto, na época, por muitos catedráticos como uma espécie de ameaça e, portanto, um sintoma de uma ação comunista. Elisa Frota-Pessoa e Jayme Tiomno tinham o costume de receber os alunos na sua casa, até porque muitos vinham de outros Estados. Era uma ação de acolhimento: saber como eles estavam, se estavam bem instalados, discutir sobre física, era uma forma de integrá-los. E alguns professores na Faculdade Nacional de Filosofia identificavam isso como uma tentativa de cooptação dos estudantes. Quando, na verdade, era uma preocupação de acolhimento e de envolvimento na pesquisa.
E o Darcy Ribeiro?
Alguns pesquisadores do CBPF eram contra a nomeação do Darcy Ribeiro para a presidência do CBPF, porque ele estava muito associado ao governo João Goulart e achavam que isso poderia ser mal visto por setores da sociedade. Fora isso, havia a ideia de que o CBPF fosse absorvido pela a UnB, o que alguns eram a favor e outros contra. Achavam que a ida do Darcy para a presidência era uma forma de agilizar essa absorção do CBPF pela UnB. Então, foi uma assembleia disputada, houve muita discussão e, no final, venceu a proposta de convidá-lo para a presidência do CBPF. Mas ele terminou ficando pouco tempo, porque com o golpe em 1964 ele teve que sair.
E, professor, o que eu achei surpreendente também no seu artigo foi aquela história de que os americanos teriam avisado o Leite Lopes de que ele estava numa lista para ser assassinado. E é muito curioso isso, porque ele deixa o Brasil com esse receio, e quem diz que, de repente, essa lista não foi forjada? Se era verdadeira ou não? Como o senhor avalia esse episódio?
Os Estados Unidos foram mudando sua posição ao longo da ditadura. No início, eles deram total apoio ao golpe militar, inclusive colocando uma frota próxima à costa brasileira. Eles tinham um receio muito grande de uma espécie de cubanização do Brasil, que o país passasse para a esfera soviética. Então, valia qualquer coisa para derrubar o governo de João Goulart. Essa posição foi se modificando ao longo do tempo, principalmente a partir do AI-5, no final de 1968, com o aumento da repressão, a divulgação dos casos de tortura que começavam a associar os Estados Unidos a essa truculência da ditadura.
De 1964 a 1968, eles deram um apoio muito grande ao governo, inclusive com o programa USAID (United States Agency for International Development), de apoio dos Estados Unidos aos países em desenvolvimento. Eles injetaram bastante dinheiro no Brasil, inclusive em pesquisas tecnológicas. Não estou com isso defendendo a posição dos Estados Unidos, eles foram copartícipes do golpe, mas eles começaram a ficar muito insatisfeitos com a postura do governo brasileiro, principalmente após o AI-5. E houve alguns casos de dar abrigo a pesquisadores e intelectuais perseguidos, como foi o caso do Leite Lopes.
Olha só, que interessante…
Havia vários grupos dentro do governo militar. Havia, por exemplo, aqueles de linha mais desenvolvimentista e outros mais liberais, defensores de menor intervenção do Estado. Por exemplo, quando sai o Castelo Branco, assume no início de 1967 o Costa e Silva, que era de uma linha mais liberal. Tanto que em 67 e 68 houve um movimento do governo brasileiro para trazer de volta os intelectuais e pesquisadores que estavam no exílio. Inclusive, o Leite Lopes, que tinha sido exilado logo após o golpe, retorna em 1967, assume as funções de chefe do Departamento de Física Teórica do CBPF e coordenador do curso de Física da Faculdade Nacional de Filosofia. Achava-se que se estava caminhando para o fim do regime. Quando, na verdade, há uma espécie de segundo golpe, um golpe dentro do golpe, já capitaneado pela linha mais radical, mais dura, que vence na disputa interna e consegue instalar o AI-5 e o processo repressivo ganha uma outra dimensão.
E é interessante você notar também que cientistas que eram acusados pelo regime dentro do CBPF tinham apoio de alguns militares e civis, mais por questões de relacionamento pessoal do que ideológico, necessariamente…
A relação entre pessoas foi muito forte, como sempre no Brasil. Os antropólogos chamam de sociedade relacional. No caso da ditadura não foi diferente. No próprio processo de aposentadorias compulsórias em 1969, alguns nomes entraram e saíram das listas preparadas pelo governo. Isso também aconteceu no CBPF com pessoas que apoiavam o regime militar, mas defendiam seus amigos e colegas. Um exemplo é do Jacques Danon, que tinha uma história de atuação na esquerda e foi protegido pelo Octacílio Cunha que era a favor do governo militar. O Otacílio Cunha, inclusive, terminou sendo uma surpresa muito triste. Logo após o golpe, ele foi escolhido para vice-presidência do CBPF, com quase a totalidade dos votos da Assembleia. Afinal de contas, era um militar da linha nacional-desenvolvimentista, tinha sido presidente do CNPq e da CNEN. Imaginava-se que era uma pessoa que tinha uma visão muito favorável ao desenvolvimento científico autônomo e que daria suporte à instituição durante o governo militar. Contudo, ele deixou aflorar um lado autoritário que o pessoal do CBPF não conhecia, e durante o período da ditadura, ele começa a perseguir, abrir processos e criar um clima de muito medo. Muita gente saiu do CBPF.
E o Mário Schenberg não conseguiu escapar da aposentadoria compulsória, por exemplo.
O Mário Schenberg era visado, pelo menos, desde 1948. Em 1946, após a saída de Getúlio Vargas, o Partido Comunista Brasileiro foi posto na legalidade. Schenberg concorreu à Assembleia Legislativa de São Paulo e foi eleito como suplemente. Com a saída do titular, ele chegou a assumir, mas ficou apenas alguns dias. O partido foi novamente colocado na ilegalidade, Schenberg foi preso e depois se exilou na Europa. Ele era muito visado por sua atuação política. Não que isso justifique alguma coisa, não é justificativa para nada, mas não causou tanta surpresa como outras pessoas que não tinham uma atuação política partidária e foram demitidos ou aposentados compulsoriamente.
Essa influência da ditadura no CBPF atrasou muito o Brasil nessas pesquisas relacionadas à energia atômica, à própria física quântica?
Excelente pergunta. O CBPF enfrentou dois problemas ao mesmo tempo. Um, era uma direção autoritária; e dois, havia uma carência muito grande de recursos. O CBPF, como se sabe, era uma sociedade civil, não tinha recursos orçamentários, eram recursos de emendas parlamentares e de órgãos de fomento. Essas duas questões juntas produziram um esvaziamento muito grande do órgão. Muita gente saiu, muita gente boa, tanto porque havia um clima persecutório, como por questões financeiras, que não tinha como financiar pesquisas ou mesmo salários. Era muito difícil. Isso provocou um esvaziamento e uma queda no CBPF. Nós fizemos um estudo sobre solicitações de bolsas do CBPF ao CNPq e vimos que há quedas significativas em 64, em 69, e a partir de 72, quando a instituição vai entrando quase que numa situação de extinção.
O senhor escreve no artigo, inclusive, que chegaram a restar só três pesquisadores…
Exato. E eu acho que, nesse sentido, lideranças acadêmicas, como Tiomno, Leite Lopes, e outros que foram para o exterior, fizeram muita falta no sentido de viabilizar soluções, de unir a equipe em torno de um caminho. Percebe-se nesse caso como uma liderança acadêmica é importante, tanto interna como externamente. No final, o problema vai ser resolvido com o general Macedo Soares, que retorna para a presidência do instituto após o falecimento de Octacílio Cunha e consegue montar uma estratégia em que o CBPF é extinto enquanto sociedade civil e é criado enquanto unidade de pesquisa do CNPq. E os pesquisadores, o patrimônio, móveis, instrumentos, tudo passa para o CNPq. Sem isso o CBPF não teria resistido a esse período.
Como o senhor avalia, por exemplo, o que a gente vive hoje? Porque é claro que quando a gente busca a história, a gente busca mostrar o que aconteceu para a gente não repetir como farsa… Mas como o senhor avalia hoje a situação do Brasil? O senhor acredita que uma situação dessas poderia voltar a acontecer como a gente sentiu nos últimos anos?
O fim do regime no Brasil foi diferente, por exemplo, da Argentina. O governo militar argentino invadiu as Malvinas como uma forma de angariar o apoio da população para se manter no poder. Quando perderam a guerra para o Reino Unido, o governo caiu. E houve na Argentina um processo de julgamento, de penalização daqueles que colaboraram com a ditadura ou que empreenderam atos de terrorismo de Estado. No caso do Brasil, houve uma abertura lenta e gradual e uma anistia ampla e irrestrita. A anistia recaía tanto sobre aqueles que foram exilados, perseguidos, aposentados, demitidos, como sobre aqueles que participaram da polícia política, torturaram, mataram. Com isso, o Brasil não fechou esse capítulo.
Talvez esse capítulo esteja sendo fechado agora com o julgamento e penalização daqueles que participaram da tentativa do golpe de 8 de janeiro. É quase como um fechamento de um ciclo, de um período. Você não resolve um trauma jogando-o para baixo do tapete. Isso todos os terapeutas sabem. Você resolve o trauma enfrentando. Não adiantava o Brasil simplesmente dizer que o que passou, passou, vida que segue, vamos esquecer o que aconteceu. Não dá, isso fica impregnado na sociedade.
E o que eu acho muito interessante, voltando à questão do CBPF, é como o CBPF soube fazer isso. Quando o diretor do CBPF faz, no final de 1979, uma sessão pública de reparação moral e reinício da colaboração, que é um reencontro de todos que foram demitidos, que sofreram violências e saíram com o corpo de funcionários – houve um discurso muito emocionado do Tiomno relatando todas as perseguições que aconteceram – o CBPF estava caminhando no sentido de curar os traumas do passado e possibilitar a reintegração das pessoas. Esse processo, por mais doloroso que seja, é muito necessário.
É importante ressaltar que havia uma diferença muito grande entre os militares e golpistas de 1964 e os militares e golpistas de 2023. Neste segundo caso, eram negacionistas, contra a ciência, a cultura, a vacina, a medicina, e achava que a educação tinha que se dar dentro de conceitos ideológicos. Enquanto que os militares de 1964, não. Quer dizer, boa parte deles era nacional-desenvolvimentista.
Por mais que tenham intervindo nas universidades, nos institutos de pesquisa, que tenham perseguido, demitido, em alguns casos assassinado professores, eles eram a favor da ciência: aumentaram o número de bolsas, criaram a reforma universitária, ampliaram o número vagas nas universidades, fortaleceram o CNPq, criaram a Embrapa, ou seja, eles mantinham a mesma ideia desenvolvimentista de antes, que teria acontecido numa democracia. Pena que isso tenha acontecido numa ditadura. Era um processo que estava em curso e continuou em curso. Enquanto que em 2023, os discursos indicavam uma tentativa de mudança do processo civilizatório.
(Colaborou Roger Marzochi)