
No último dia 2 de abril, o periódico Physical Review Letters — uma das publicações científicas mais prestigiadas no campo da física — divulgou o artigo Low-Energy Excitations in Bosonic Quantum Quasicrystals que lança novas luzes sobre um dos estados mais exóticos da matéria: os quasicristais quânticos. O trabalho é assinado por uma equipe internacional de pesquisadores, entre eles o professor Alejandro Mendoza, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que figura como um dos autores principais da pesquisa. O artigo recebeu destaque do próprio jornal no portal Physics Synopsis onde a publicação foi divulgada em linguagem mais acessível para o grande público.
A publicação é fruto de uma construção teórica de primeiros princípios, com foco na descrição das excitações de baixa energia em quasicristais quânticos formados por bósons — partículas que obedecem à estatística de Bose-Einstein, como os átomos que formam os condensados em temperaturas ultrafrias. O estudo propõe uma teoria elástica generalizada que preserva os graus de liberdade necessários para descrever os modos coletivos sem lacunas de energia (gapless), que surgem naturalmente nesse tipo de sistema.
Quasicristais são estruturas que desafiam a tradicional classificação entre sólido cristalino e sólido amorfo. Possuem uma ordem orientacional de longo alcance, mas sem a periodicidade típica dos cristais convencionais. Descobertos inicialmente em ligas metálicas nos anos 1980, os quasicristais passaram a ser observados em contextos cada vez mais diversos, incluindo sistemas com átomos ultrafrios, onde a interação entre partículas pode ser manipulada com alto grau de controle.
Mendoza, que recentemente teve um artigo publicado sobre a formação de fases superquasicristalinas em sistemas dipolares, explica ao Boletim SBF a diferença entre o cenário considerado anteriormente e o novo trabalho: na publicação anterior os átomos formam o padrão quasicristalino devido à presença de armadilhas criadas externamente com feixes de laser, neste caso é o padrão de interferência da luz que determina a estrutura. No novo cenário, que é o foco do estudo mais recente, a estrutura se forma de maneira espontânea, sem a imposição de um potencial externo.
Nesse cenário, os átomos estão confinados a um plano — um sistema essencialmente bidimensional — e são excitados por um laser em movimento. Essa excitação altera o estado interno dos átomos, levando-os a interagir entre si de modo a formar, por si mesmos, a estrutura quasicristalina. Ou seja, é o próprio sistema que “decide” como se organizar, sem uma armadilha forçando isso.
Mais do que estudar a estrutura em si, o trabalho foca em aspectos fundamentais: como essa estrutura evolui no tempo, quais são suas propriedades estatísticas e, sobretudo, como ela reage a pequenas perturbações. O interesse está em entender que tipos de excitações — ou modos de vibração — surgem nesse sistema quando ele é levemente perturbado, como se quiséssemos observar as ondulações formadas ao jogar uma pedra em um lago tranquilo.
No caso desse quasicristal bidimensional, a pesquisa revela algo surpreendente: a existência de cinco tipos distintos de excitações. Cada um desses modos representa uma forma diferente com que a estrutura pode vibrar ou responder a estímulos externos, revelando uma riqueza dinâmica incomum para sistemas bidimensionais. Mendoza explica que a literatura científica já discutia, desde 2014, a possibilidade desses cinco modos de vibração, mas o estudo do qual participou é o primeiro a desenvolver uma teoria que comprova esses ‘sons’ da matéria.
No artigo, os autores exploram as estruturas quaseperiódicas bidimensionais mais relevantes: octagonais (com simetria de rotação em Pi/4), decagonais (com simetria de rotação em Pi/5) e dodecagonais (com simetria de rotação em Pi/6). A existência de cinco modos coletivos de excitação sem lacuna de energia nessas estruturas era algo que, até então, havia sido previsto apenas por argumentos baseados em simetria. A demonstração direta a partir da ação microscópica do sistema representa um avanço significativo na compreensão teórica dessas fases da matéria.
Um aspecto particularmente interessante do estudo é a análise da hibridização entre diferentes tipos de excitações: fônons (relacionados às vibrações do meio), fásons (associados à liberdade de reorganização interna da estrutura quaseperiódica) e o modo sonoro do condensado de bósons. A maneira como esses modos se combinam depende da simetria do quasicristal. No caso das estruturas dodecagonais e decagonais, os modos coletivos mantêm uma velocidade de propagação isotrópica — ou seja, a mesma em todas as direções. Já nos quasecristais octagonais o acoplamento entre fônons e fásons dá origem a uma velocidade do som anisotrópica, que varia conforme a direção da propagação, além de gerar excitações com caráter misto entre os componentes longitudinal e transversal.
“Nesse caso, por se tratar de um quasicristal — uma estrutura mais exótica —, surgem dois modos adicionais de excitação, conhecidos na literatura como fásons. Eles são bem particulares. Os fônons, por outro lado, são mais familiares: fazem a estrutura vibrar e se deformar suavemente. É o que você esperaria, por exemplo, em um sistema de massas ligadas por molas — quando você desloca uma delas da posição de equilíbrio, a perturbação se propaga como uma onda, deformando levemente a estrutura, mas sem causar um rearranjo real dos átomos. Eles apenas oscilam em torno de suas posições originais, e a estrutura, como um todo, se mantém”, explica Mendoza.
“Com os fásons, a história é diferente. Eles podem provocar rearranjos na estrutura durante a propagação da onda. E aí está justamente a essência do quasicristal: mesmo com esses rearranjos, a estrutura não perde sua identidade quasicristalina. Isso acontece porque existem infinitas formas diferentes de organizar um quasicristal que, embora pareçam distintas num olhar superficial, pertencem à mesma classe estrutural. Os fásons são rearranjos das partículas que permitem ao sistema ‘migrar’ de uma configuração para outra, mantendo a mesma essência estrutural, ainda que a aparência mude”, continua o cientista.
O estudo também investiga como essas excitações se comportam nas fronteiras entre diferentes fases termodinâmicas — por exemplo, entre a fase quasicristalina e as fases de baixa ou alta densidade —, o que pode ter implicações importantes para experimentos com gases atômicos ultrafrios. Plataformas experimentais com átomos confinados em armadilhas ópticas já observaram indícios dessas fases em laboratório, e a teoria proposta fornece um arcabouço robusto para interpretar tais observações.
A abordagem adotada por Mendoza e seus colegas parte da formulação por integrais de caminho da função de partição do sistema, mantendo uma conexão direta com as propriedades microscópicas do modelo. Isso permite não apenas a descrição precisa das excitações de baixa energia, mas também o acesso a uma série de propriedades termodinâmicas relevantes, como susceptibilidades e coeficientes de resposta. A metodologia desenvolvida poderá ser aplicada em diversos contextos onde há competição entre múltiplas escalas de comprimento — uma das condições fundamentais para o surgimento de quasicristais.
Entre as perspectivas futuras apontadas pelos autores está a extensão da teoria para sistemas de estado sólido, como o grafeno bicamada torcido (Twisted Bilayer Graphene). Os padrões de interferência moiré que surgem nesse material criam estruturas quasiperiódicas em escalas nanométricas, tornando-o um candidato natural para a realização de quasecristais quânticos eletrônicos. O tratamento desse caso exigirá novos elementos na teoria, como o acoplamento entre camadas e entre os elétrons e a rede cristalina.
“A principal importância do nosso trabalho está, sem dúvida, na pesquisa básica. Mas, diferente de estudos anteriores — nos quais explorávamos principalmente as fases da matéria —, este trabalho vai além: ele propõe uma nova teoria, uma metodologia que pode ser aplicada ao estudo de sistemas quânticos modulados em geral. Acreditamos que a técnica que apresentamos aqui tem potencial para ser utilizada em diversos contextos”, afirma.
“Inclusive, já começamos a adaptá-la para investigar sistemas supersólidos, que são sistemas semelhantes aos que estudamos agora, mas com uma estrutura periódica. Supersólidos são fases cristalinas — com uma organização espacial definida —, mas que ao mesmo tempo mantêm propriedades de superfluidez internamente. Parece algo contraintuitivo, quase impossível: um sistema que é sólido e superfluido ao mesmo tempo. Mas o mundo quântico permite esse tipo de comportamento exótico. Nossa expectativa é que essa metodologia se torne uma ferramenta útil e amplamente aplicada no estudo da matéria condensada. Se isso acontecer, consideraremos esse trabalho um verdadeiro sucesso.”
O destaque do artigo na Physical Review Letters marca não apenas uma conquista pessoal para o professor Alejandro Mendoza, como também uma importante contribuição da ciência brasileira ao cenário internacional da física teórica da matéria condensada. Combinando rigor matemático, elegância conceitual e relevância experimental, o estudo reforça o papel das universidades públicas brasileiras na produção de conhecimento de ponta — mesmo em áreas de complexidade extrema, como a física quântica de muitos corpos.
(Colaborou Roger Marzochi)