Rodrigo Capaz discursa na abertura do simpósio na USP. (Crédito: Roger Marzochi)
Rodrigo Capaz discursa na abertura do simpósio na USP. (Crédito: Roger Marzochi)

Evento na USP discutiu não apenas a história do estudo dos raios cósmicos e dos cem anos de César Lattes, mas iniciou um debate que poderá dar sustentação para a evolução da ciência brasileira no maior acelerador de partículas do mundo.

A definitiva associação do Brasil à Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN) neste ano exigirá da comunidade de Física de Altas Energias uma grande articulação com agências governamentais de fomento, indústria e pesquisadores.  Isso é necessário para que o País tenha sucesso tanto no desenvolvimento científico quanto na qualificação das companhias brasileiras que agora poderão disputar contratos para os experimentos do LHC, o maior acelerador de partículas do mundo.

Essa foi a mensagem principal dos últimos debates que foram realizados ao fim do primeiro dia do simpósio “Dos Raios Cósmicos aos Aceleradores de Partículas”, em 1º de julho, evento que terminou no dia 3 de julho de 2024 no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), celebrando os cem anos de nascimento do físico César Lattes com a emocionante participação de sua filha Maria Cristina, numa programação rica e extensa com palestras durante todo o dia de grandes nomes da ciência brasileira e agências de fomento.

Maria Cristina Lattes entre os pesquisadores Ignácio Bediaga e Marcelo Munhoz (CréditoIFUSP) em evento na USP em homenagem á César Lattes.
A convidada Maria Cristina Lattes Vezzani, filha de César Lattes, participa da abertura do Simpósio, entre os pesquisadores Ignácio Bediaga (Presidente INCT CERN-Brasil) e Marcelo Munhoz (IFUSP, INCT CERN-Brasil). (Crédito: IFUSP)

O presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), Rodrigo Capaz, ressaltou a importância de associar a comemoração dos cem anos de Lattes aos 90 anos da USP e 70 anos do CERN. “São coincidências que estão todas conectadas e interrelacionadas. Esse evento aqui que celebra essas três datas veio bem a calhar, porque reúne essa oportunidade para a gente não só celebrar o passado, mas olhar com esperança e com muito entusiasmo para a física de partículas de Altas Energias para o futuro”, afirma.

“Eu me sinto muito honrada em receber esse reconhecimento em nome do meu pai, em uma instituição como a USP, que foi o berço de sua educação. Ele nasceu como cientista aqui, ingressando com 16 anos e estudando com Gleb Wataghin, fazendo assim a sua carreira científica. O importante dessa comemoração para mim é que sirva de incentivo aos novos talentos, porque, para meu pai, a ciência e a educação eram pilares do progresso do País”, diz Maria Cristina Lattes Vezzani sobre o evento, que também debateu o ensino de física.

O auditório Abrahão de Moraes ficou lotado, com a participação de muitos estudantes. Daniel Oliveira, 26 anos, veio de Ilhéus, na Bahia, especialmente para o evento. Com licenciatura e bacharelado em Física pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Daniel faz agora mestrado com o tema do ensino da física. “O evento está sendo bem legal, porque é uma temática que eu trabalho no meu mestrado, é o próprio processo de divulgação e de ensino da física de partículas elementares, mas, em especial, a descoberta do César Lattes. Então, ver as pesquisas nessa área é muito importante, porque colabora com a minha formação. E também conhecer os pesquisadores que estão contribuindo com essas pesquisas.”

Guilherme Santana, 21, e Matheus Sanches, 24, viajaram de São Carlos até São Paulo para o evento. Eles estudam no Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo. E Guilherme, que está no mestrado, queria saber mais do CTA, a maior rede de telescópios que estudará raios gama, do qual o professor Luiz Vitor de Souza, da mesma instituição de ensino, é o presidente do comitê científico; já Matheus, que está no início do mestrado, quer se aprofundar na física computacional. “Eu acho que é muito importante (um evento como esse). Primeiro por causa do contato. Eu acho que é muito importante a gente criar o networking na ciência, porque você sempre vai lendo artigos, só que são pessoas que você não enxerga, né? São só nomes no papel. E quando você vem nesse tipo de evento e vê as pessoas que escreveram os artigos que você leu, isso é muito legal”, diz Matheus.

Esse evento nem teria acontecido se Lattes tivesse seguido o conselho de conhecidos em Bristol, em 1947, sobre qual companhia aérea usar para fazer o seu caminho até Chacaltaya, na Bolívia. A física Carola Dobrigkeit Chinellato, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), foi aluna e amiga de Lattes, em uma linda palestra sobre a história dos raios cósmicos até as astropartículas, desde Bernhard Gross (1933), Lattes, até observatórios gigantescos como o Pierre Auger (2004), na Argentina, e o futuro CTA e projeto SWGO, confidenciou à plateia que o avião que indicaram a Lattes para fazer sua jornada até a Bolívia, passando por São Paulo, havia caído em Dakar, sem sobreviventes. “Ele preferiu viajar numa companhia brasileira e, quando chegou ao Brasil, descobriu que o avião que iria tomar caiu no Dakar e morreu todo mundo. Ele gostava de contar essa história, porque ele teve a sorte, a intuição de não pegar aquele avião”, diz.

Leandro de Paula (UFRJ) realiza apresentação durante a mesa redonda “O Futuro do Financiamento da Física de Altas Energias no Brasil”. À mesa, Carlos Alberto Aragão de Carvalho Filho (Dir. Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Finep), Jerson Lima da Silva (Presidente FAPERJ), Carlos Frederico de Oliveira Graeff (UNESP) e Ricardo Galvão (Presidente CNPq)  (Crédito IFUSP)
Leandro de Paula (UFRJ) realiza apresentação durante a mesa redonda “O Futuro do Financiamento da Física de Altas Energias no Brasil”. À mesa, Carlos Alberto Aragão de Carvalho Filho (Dir. Desenvolvimento Científico e Tecnológico da Finep), Jerson Lima da Silva (Presidente FAPERJ), Carlos Frederico de Oliveira Graeff (UNESP) e Ricardo Galvão (Presidente CNPq) (Crédito IFUSP)

As turbulências desse primeiro dia de evento ocorreram, de certa forma, no último debate, sobre o financiamento dos projetos científicos no CERN. O Brasil participa de quatro experimentos no LHC, um experimento fora do acelerador e mantém 135 cientistas trabalhando na Suíça. Com a adesão plena do país à instituição internacional, é necessário financiar essas pesquisas ainda mais agora. Em uma ampla apresentação sobre as características das pesquisas de Altas Energias, o físico Leandro de Paula, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Comitê Técnico e Científico da Rede Nacional de Física de Altas Energias (RENAFAE), questionou a falta de dinheiro para enviar pesquisadores brasileiros ao exterior para atuar nos experimentos e qual será o papel da indústria nesse processo. “É uma demanda muito grande de viagem, porque se eu tenho laboratório no meu instituto, eu atravesso o corredor e vou no laboratório. Se meu laboratório é lá no Japão, eu tenho que viajar para o Japão a toda hora”, diz.

O físico Ricardo Galvão, presidente do CNPq, secretário-científico do Brasil no CERN, disse que há anos mantém Acordo de Cooperação com o CERN, provendo US$ 180 mil ao ano para pagamento dos custos operacionais e de manutenção dos pesquisadores brasileiros que trabalham no CERN. Quanto ao pagamento de viagens de pesquisadores ao CERN, Galvão lembra que discutiu no evento o envio de alunos de pós-graduação e técnicos para realização de missões específicas, em geral de curta duração, como instalação, manutenção e testes de equipamentos. “Qual é a posição do CNPq? Isso tem que ser contrapartida das instituições, sinto muito. Isso tem que ser contrapartida principal das instituições”, afirmou ele, que fez um amplo relato sobre a “briga de foice no escuro” pela competição de recursos entre todas as áreas científicas que demandam financiamento à instituição.

“Nesses casos, penso que essas viagens devem mesmo ser custeadas pelas instituições, como contrapartida dos recursos financiados pelas agências de fomento. Mas, os recursos para viagens de pesquisadores certamente podem ser financiados dentro de projetos de pesquisa, desde que devidamente previstos na proposta inicialmente submetida”, diz Galvão, após o evento.

Ele também relatou que esteve com o Diretor-Geral do CERN, em 2009, em um jantar com delegações de países não-europeus que estavam considerando associação ao CERN. Galvão relatou que Diretor-Geral elogiou a participação dos cientistas brasileiros no CERN, então da ordem de 80, mas foi questionado sobre sua dispersão, trabalhando em quatro colaborações distintas (diretamente no LHC), e não concentrados em uma única, como era o caso da China.

“Perguntei então ao Delegado Chinês se a comunidade de Física de Altas Energias da China não teria apresentado várias propostas para trabalhar em todas a colaborações. Ele respondeu-me que sim, haviam recebido de sua comunidade um grande número de propostas, praticamente todas excelentes. Perguntei em seguida como eles fizeram a escolha da colaboração em que terminaram participando. Ele, na frente do diretor-geral do CERN, falou: foi simples, escolhemos aquela na qual a indústria chinesa podia participar mais. Ponto final. Foi a resposta dele.”

Galvão ressaltou a importância do RENAFAE, mas lembrou que se uma instituição isolada pedir financiamento, será possivelmente negado, pois é preciso uma ação coordenada. “Nós vamos ter que aprender na área de Altas Energias a articular nossas ações. Se vão pensar que o Ministério vai dar tanto para Altas Energias, esqueça, isso é ingenuidade”, afirma, em palestra da qual participaram ainda Carlos Alberto de Aragão de Carvalho Filho, da Finep, e Jerson Lima da Silva, da Faperj.

Representando a Fapesp, Carlos Frederico de Oliveira Graeff explicou que, desde a criação da fundação, a análise dos pedidos de financiamento tem como base o pesquisador. Agora, com a adesão do Brasil ao CERN, a Fapesp buscará também acordos institucionais. “A FAPESP apoia há anos vários projetos, mas sempre foi feito de uma forma individual, pedidos de um ou mais pesquisadores que queriam participar de um experimento. Esse instrumento funciona, mas tem os seus problemas, é isso que estamos discutindo, novos instrumentos para atender melhor essa comunidade”, diz.

“A FAPESP tem interesse em assinar acordos institucionais com esses grandes experimentos, para maior segurança dos pesquisadores da área, para que o apoio seja de longa duração com direitos e obrigações de ambas as partes, com grandes laboratórios ou instituições internacionais e nacionais, como o CERN” O evento, portanto, foi importante para se iniciar o debate sobre quais rumos o Brasil tomará a partir desse momento histórico de sua adesão ao CERN, um movimento que nasceu na década de 1940, na audácia de um jovem pesquisador chamado César Lattes.

(Colaborou Roger Marzochi)