A última edição da Revista Brasileira de Ensino de Física, recém-publicada, traz dois artigos extremamente importantes para o futuro da formação escolar nacional.
Um deles investiga o desempenho dos alunos em questões de física do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e a formulação da prova em si. Outro vasculha a literatura em busca de referências sobre a integração das matérias de ciência (física, química e biologia) numa única disciplina, proposta recentemente defendida pelo MEC (Ministério da Educação). Nos dois casos, as notícias preocupam os gestores do sistema educacional brasileiro.
Em “As questões da física e o desempenho dos estudantes do ENEM”, Wanderley P. Gonçalves Jr. e Marta Feijó Barroso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, analisam as questões e respostas ligadas à física da prova de Ciências da Natureza do ENEM de 2009, 2010 e 2011.
“A análise qualitativa revela as características da prova nestes anos: questões longas, com pouca exigência de raciocínios mais complexos característicos da resolução de problemas, e uma tendência de distribuição de questões por objetos de conhecimento diferentes do tradicional no Ensino Médio”, afirmam os pesquisadores.
Contrastar isso com o desempenho dos alunos nas questões permite um diagnóstico preciso – e dramático – do ensino de física nas escolas brasileiras. “O percentual de acertos nos itens quase sempre é baixo, e questões que exigem algum tipo de conhecimento disciplinar ou que exigem utilização de raciocínios matemáticos apresentam um desempenho sensivelmente mais fraco.”
Ou seja, temos um debilitado ensino de física com baixo aproveitamento dos alunos no sistema educacional brasileiro, tal qual ele se desenha hoje. Mas isso pode piorar ainda mais, caso o MEC siga adiante com seus planos de integrar todas as disciplinas científicas num único curso, como discutido em “Integração curricular por áreas com extinção das disciplinas no Ensino Médio: Uma preocupante realidade não respaldada pela pesquisa em ensino de física”, por Erika Regina Mozena e Fernanda Ostermann, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul curso no Ensino Médio.
“Nessa mudança, as disciplinas de física, química e biologia seriam ministradas por um único professor sob a denominação de ‘ciências da natureza’”, escreve a dupla da UFRGS. A lógica do MEC é preparar os alunos para o futuro, onde a tônica das pesquisas de ponta muitas vezes se encontra na interdisciplinaridade – no entrelaçamento de conteúdos de diversas áreas.
As pesquisadoras mostram, contudo, que unificar as disciplinas com base nisso é falacioso. “Mostramos nesse trabalho, a partir de revisão bibliográfica, que a interdisciplinaridade tem sido estudada e defendida pela pesquisa em ensino de física/ciências apenas em momentos específicos na sala de aula e não de maneira integrada, evidenciando que a mudança proposta pelo MEC não tem qualquer respaldo científico.”
Para ler os dois artigos na íntegra, clique aqui (sumário do vol. 36, n. 1 da RBEF). Abaixo, entrevistas-relâmpago com autoras dos trabalhos.
Jogo rápido com Marta Feijó Barroso (UFRJ)
SBF – É interessante esse levantamento porque mostra que física já é um elo fraco no ensino de ciências nas escolas brasileiras. O que explicaria isso?
Barroso – Eu não fiz levantamento similar em todas as provas para avaliar se química ou biologia são piores. Na prova de 2009, as questões de física foram problemáticas. O que explicaria isso? Não sei exatamente. Posso fazer uma consideração: a forma como a física vê a natureza pressupõe uma espécie de intercâmbio entre conceitos e operacionalização desses conceitos; num exemplo muito simples, não basta repetir que velocidade é deslocamento por intervalo de tempo, é necessário entender que esse conceito significa que o aumento do intervalo de tempo com o mesmo deslocamento faz com que a velocidade seja menor. Em outras palavras, trabalhar com “contas” amplia nosso conhecimento sobre os conceitos e vice-versa. É absolutamente necessário que o aluno faça conexões mentais, resolva problemas etc. Uma questão de três minutos não avalia se o aluno tem as competências mínimas para resolver problemas, por exemplo.
Aliás, eu já concluí a análise das provas de 2010, 2011 e 2012. O quadro é o mesmo. Não é a física, exclusivamente, o problema – é a capacidade (ou habilidade, ou competência) de resolver problemas, de raciocinar com base em evidências.
SBF – A proposta de integrar todas as disciplinas científicas no Ensino Médio tende a agravar esse problema?
Barroso – Considero que sim. A proposta de uma disciplina “Ciências da Natureza” no Ensino Médio descaracterizará completamente as disciplinas. (E isso daria uma longa conversa.)
Jogo rápido com Erika Regina Mozena (UFRGS)
SBF – O trabalho de vocês mostra que a integração das disciplinas científicas não tem respaldo científico. A preocupação da integração torna-se mais grave quando descobrimos que há falta de professores de física e de química e maior número de biólogos?
Mozena – Pelo menos na prática sim. Os professores, a partir de uma perspectiva integracionista, podem livremente se fixar em suas disciplinas de base e tratar superficialmente o conteúdo das outras disciplinas, a exemplo do que acontece em grande escala no ensino de Ciências da Natureza no Fundamental, em que a maioria dos professores são biólogos e deixam de ministrar as outras disciplinas até mesmo por desconhecimento da matéria. Dessa maneira, com a falta que temos de professores de física (sendo esta disciplina o maior problema, pois os dados mostram que apenas 25% que lecionam física têm formação específica) e química, não nos parece exagero supor que o ensino de física e química sejam prejudicados, pelo menos na prática cotidiana.
SBF – Um argumento interessante apresentado por vocês é o de que a interdisciplinaridade só é boa quando é criteriosa. Como saber quando integrar e quando não integrar?
Mozena – Nosso trabalho aponta que uma integração total por áreas, como aquela defendida pelo MEC, não deveria ser adotada pelo menos por enquanto, já que não há pesquisas nem evidências científicas que respaldem essa mudança ou mesmo o fato de que a integração por áreas seja garantia de melhor resultados de aprendizagem. No entanto, a interdisciplinaridade em momentos específicos no ensino tem sido bastante estudada e apresenta resultados promissores. Em tese, sempre que um conhecimento engloba várias disciplinas, ele pode ser ensinado de maneira interdisciplinar. A escola, equipe pedagógica e professores são aqueles que devem escolher quando e de que maneira realizar essa integração, pois o ensino interdisciplinar depende do conteúdo a ser ministrado, do público-alvo, do contexto do ensino e dos objetivos pedagógicos envolvidos numa aula. Vamos usar um exemplo. Vamos supor que um professor de física quer ensinar sobre som. Se ele leciona numa escola cuja única preocupação é preparar para o vestibular e tem um cronograma apertado, provavelmente esse professor vai apenas usar seus livros e ensinar sobre som pelo viés da física. Por outro lado, se sua proposta de ensino tem um cunho mais cultural, ele não poderá deixar de trabalhar em sala de aula as relações entre o som e a música (perspectiva interdisciplinar que ele pode tanto fazer sozinho em sua aula, como trabalhar em conjunto com o professor de música/arte da escola). Também não faz muito sentido aprender sobre som e música sem compreender os mecanismos da audição: por que não ensinar o tema som sob o viés da biologia também? E se por acaso os alunos da comunidade escolar frequentem bailes específicos com música muito alta? Por que não se discutir no ensino a relação entre intensidade sonora e saúde? Quais são as leis acerca do silêncio? Quais as questões éticas e de cidadania envolvidas? E aquelas relativas ao nível máximo de decibéis permitidos? É importante que fique claro que as possibilidades de usar a interdisciplinaridade no ensino são vastas, o que determina a forma e a necessidade desse uso são os objetivos pedagógicos da escola/professor que necessariamente devem estar atrelados ao contexto sócio-histórico em que a escola e seus alunos estão inseridos.