Cientistas da Unicamp avançam nos estudos de dois dos fenômenos mais incríveis da física quântica.

A ciência não é um oráculo místico que a tudo vê, nem a palavra final em nenhum tema sobre o qual a sua lupa é estendida. Novas descobertas levam a novas interpretações da Natureza, amplificam o horizonte do conhecimento, e podem, inclusive, forçar a revisão de conclusões bem estabelecidas e aceitas. É dentro desse espírito que os cientistas Marcelo Terra Cunha, do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica da Universidade Estadual de Campinas (Imecc-Unicamp), e Rafael Rabelo, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin, da mesma instituição de ensino (IFGW-Unicamp), lideraram novas pesquisas que revelaram que a não-localidade e a contextualidade – dois fenômenos que não admitem explicação dentro de nenhuma teoria clássica – podem ocorrer simultaneamente em sistemas quânticos, mas não de forma arbitrária, pois há, em geral, limitações nas formas como tais fenômenos podem se manifestar. 

Ambos os pesquisadores ganharam ainda mais destaque internacional no ano passado quando, em parceria com outros cientistas, publicaram em janeiro o artigo “Synchronous Observation of Bell Nonlocality and State-Dependent Contextuality” no periódico Physical Review Letters. O texto, destacado na publicação como “sugestão do editor”, refutou a ideia bem estabelecida de que os exemplos mais simples e conhecidos de não-localidade e contextualidade não poderiam ocorrer ao mesmo tempo. Esta ideia foi proposta pelos cientistas Pawel Kurzynski, Adán Cabello e Dagomir Kaszlikowski no artigo “Fundamental Monogamy Relation between Contextuality and Nonlocality”, publicado na Physical Review Letters em março de 2014.  Posteriormente, a pesquisadora Peng Xue, do Beijing Computational Research Center, na China, liderou um experimento que corroborou com os resultados do trio de cientistas, com achados publicados também na Physical Review Letters, no artigo “Realization of the Contextuality-Nonlocality Tradeoff with a Qubit-Qutrit Photon Pair“. 

Em linhas gerais, a não-localidade é um fenômeno relacionado a fortes correlações entre medições realizadas em sistemas quânticos compostos de duas ou mais partes, que podem se manter mesmo que cada uma das partes esteja muito distante das demais. Ela está na raiz de inúmeros debates fundamentais desde o surgimento da mecânica quântica (como o proposto no célebre artigo de Einstein, Podolski, e Rosen), mas sua formulação precisa foi realizada por John Stewart Bell, em um artigo publicado em 1964. A contextualidade, por sua vez, foi formulada por Simon Kochen e Ernst Specker, em artigo publicado em 1967, além de ter sido investigada também por Bell, em meados dos anos 1960. Ao contrário da não-localidade, a contextualidade pode ser observada em um único sistema, mas, assim como a primeira, está relacionada a fortes correlações entre medições realizadas no sistema em questão.

Revisitando o resultado negativo de Kurzysnki e colaboradores, os cientistas da Unicamp notaram que uma pequena modificação em um dos conceitos adotados naquele trabalho poderia ter consequências enormes, permitindo o que, até então, era entendido como impossível: a observação simultânea de não-localidade e contextualidade. Eles notaram também que o experimento realizado na década anterior já poderia ter demonstrado este fato, com uma reinterpretação dos dados, e entraram em contato com Peng Xue. A pesquisadora não apenas cedeu os dados do experimento anterior, mas, ao saber que eram insuficientes para provar a existência do novo fenômeno, se prontificou a realizar um novo experimento, a fim de fornecer um conjunto mais completo de dados. Em ambos os experimentos, Xue e sua equipe utilizaram um laser que, aplicado sobre um cristal especial, gerava pares de fótons gêmeos, emaranhados, que então passavam por uma série de medições. “Este trabalho em colaboração com a Profa. Xue mostrou que sim, é possível que os exemplos mais simples de contextualidade e não localidade ocorram simultaneamente”, explica Terra Cunha.

Mas como a ciência não para, os pesquisadores realizaram novos estudos, agora teóricos, com a participação dos pesquisadores Lucas Porto e Gabriel Ruffolo, ambos estudantes do Programa de Pós-Graduação em Física da Unicamp, e do cientista Pawel Kurzynski, que está supervisionando Gabriel em um estágio de pesquisa na Polônia. O novo trabalho, intitulado “Trade-off relations between Bell nonlocality and local Kochen–Specker contextuality in generalized Bell scenarios”, foi publicado no dia 30 de agosto de 2024 no periódico de acesso livre New Journal of Physics.

No novo estudo, os cientistas aprofundam as investigações sobre a ocorrência simultânea de não-localidade e contextualidade, e apontam casos em que a ocorrência de um fenômeno limita a manifestação do outro. “Acho importante destacar o contexto desse artigo, porque de fato é uma continuação da pesquisa publicada em 2023. A partir do momento que mostramos que a ocorrência simultânea era possível, nós nos questionamos se era possível também ter muito de contextualidade e de não-localidade ao mesmo tempo. E, agora, mostramos que não. Não é um caso geral, mas para várias situações de interesse, se você tiver muito de um, não pode ter muito do outro”, explica Rabelo.

Pesquisas como esta podem ter aplicações nas chamadas tecnologias quânticas de segunda geração. As ditas tecnologias quânticas de primeira geração são aquelas nas quais sistemas quânticos são utilizados em hardware, mas os efeitos quânticos são, em geral, passivos. Já nas tecnologias de segunda geração, efeitos quânticos não são apenas aplicados, mas são diretamente manipulados e usados como recursos para diferentes tarefas.

A não-localidade, por exemplo, pode ser utilizada em sistemas de comunicação e criptografia, enquanto a contextualidade pode ser utilizada como recurso em alguns modelos de computação quântica. Entender como ambos podem estar presentes no mesmo sistema quântico pode ser importante para o desenvolvimento de aplicações e tecnologias inovadoras, que podem precisar dos dois recursos.

Terra Cunha, que é coordenador da Comissão de Área pró-tempore em Ciência e Tecnologias da Informação Quântica (CTIQ) da Sociedade Brasileira de Física (SBF), membro do Comitê Internacional e Coordenador do Dia Mundial Quântico no Brasil, e membro do GT da SBF sobre o Ano Internacional da Ciência e das Tecnologias Quânticas, acredita que o ano de 2025 será muito importante para difundir a física quântica para a sociedade, apesar de sua alta complexidade e caráter contraintuitivo. 

 A Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da UNESCO, proclamou 2025 como o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas (IYQ, na sigla em inglês), em celebração aos 100 anos de desenvolvimento da mecânica quântica. “É superimportante ter essa data reconhecida pela Unesco. Muitas agências de fomento darão a devida importância. Assim como o Dia Mundial Quântico, criado por rede de pesquisadores em mais de 60 países, o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas tem o mesmo objetivo: levar o assunto para a sociedade, que não é simples, mas não pode ser mistificado”, afirma Terra Cunha. “Precisamos levar da melhor maneira possível, porque as tecnologias quânticas já existem.”

(Colaborou Roger Marzochi)