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A SBF está enlutada.

Faleceu hoje o Prof. Ronald Cintra Shellard, nosso vice-presidente de 2009 a 2013.

Ronald Cintra Shellard

Conheci o Shellard, como a maioria de seus colegas brasileiros o chamava, em 2004, quando trabalhei na comissão que, sob sua coordenação e de Alaor Chaves, elaborou a publicação da SBF Física para o Brasil – Pensando o Futuro, em comemoração ao Ano Internacional da Física, em 2005. Entre nós estabeleceu-se imediatamente uma agradável e sólida amizade.  Seu espírito inovador e sensatamente otimista, com uma visão abrangente e progressista do papel crucial da física, e da ciência em geral, para o progresso da sociedade brasileira, me cativou. Eu compartia muitas de suas preocupações, como a necessidade de estabelecer mecanismos sólidos para viabilizar nossa participação, como protagonistas de ponta, em grandes colaborações internacionais, fortalecer no país a implantação de grandes laboratórios nacionais, associados às universidades mas não delas dependentes, incentivar a melhor distribuição de grupos e centros de pesquisa no território nacional, estimular fortemente a atividade de produção de instrumentação científica no país, não só para reduzir nossa dependência externa, como também para permitir o desenvolvimento de instrumentação e dispositivos originais, aprimorar a formação de professores de física para o ensino médio, ampliar a visibilidade da física brasileira no cenário internacional, etc.

Por isso, ao ser indicado Diretor do CBPF, o convidei a colaborar comigo na função de Vice-Diretor, embora este cargo não fizesse parte da estrutura organizacional oficial da instituição. Foi uma das decisões mais acertadas de minha vida. Ele foi um contraponto importantíssimo à minha forma mais “gerencial” de dirigir a instituição, sempre trazendo novas ideias e propostas, às vezes um tanto ambiciosas ou de difícil execução, mas sempre criativas. Cada vez que lhe dizia “Shellard, estás viajando na maionese”, ele replicava, “um cientista, em particular um físico, nunca deve se autolimitar em suas ideias, mesmo que sejam utópicas ou demasiadamente abrangentes, desde que sejam honestas”. E muitas iniciativas que partiram de nossas discussões tiveram êxito. Uma das mais importantes foi a implantação da Rede Nacional de Física de Altas Energias – RENAFAE. Após várias discussões sobre a proposta, articuladas pelo Shellard, eu e o Carlos Aragão de Carvalho redigimos uma minuta da portaria de criação da rede, que foi aprovada pelo Ministro Sérgio Rezende. Implantada a RENAFAE, Shellard desempenhou um papel fundamental em sua gestão e consolidação inicial. Pela portaria de criação, a coordenação da RENAFAE ficou sob responsabilidade do CBPF, cujo Diretor deveria presidir seu Comitê Técnico-Científico. Não sendo eu um especialista na área, tive que contar com a valiosa e competente assessoria do Shellard, além da de outros colegas do CBPF, para desempenhar a função. Ele era um entusiasta da ideia de associação do Brasil ao CERN e trabalhou incansavelmente para viabilizá-la, ao longo de muitos anos. A associação foi finalmente aceita pelo Conselho do CERN em setembro deste ano, e sobre ela comentou Shellard “A entrada do Brasil como membro associado vai significar mais regularidade e previsibilidade para os aportes de recursos para a ciência, isso vai ter impacto no desenvolvimento de instrumentação científica e na inovação”. O acordo ainda terá que ser ratificado pelo Congresso Nacional e é com tristeza que vemos sua partida antes que entre totalmente em vigor.

Apesar de seu grande esforço para viabilizar essa associação, Shellard não estava diretamente envolvido em colaborações no CERN. Há muitos anos, tinha voltado o foco de sua atividade científica para pesquisa em astro-partículas. Desde 1995 teve participação destacada no Observatório Pierre Auger, como pesquisador e articulador da colaboração brasileira. Tinha muito orgulho das contribuições científicas e instrumentais brasileiras ao projeto. Uma das viagens mais prazerosas e instrutivas que já fiz foi para visitar as instalações do observatório em Malargue. Fomos eu e ele acompanhados de Alaor Chaves e José Monserrat, dois colegas que ele muito admirava e estimava. A longa viagem por terra, de Mendonza a Malargue, e o período que lá passamos juntos, foi uma oportunidade inigualável de discussões enriquecedoras sobre assuntos mais diversos, desde a teoria da evolução à formulação de políticas científicas, passando naturalmente por física em geral, astro-partículas, programa espacial etc. Em Malargue, tive oportunidade de testemunhar a grande respeitabilidade que Shellard gozava junto aos pesquisadores líderes da colaboração. Sob sua liderança, o CBPF deu também grande contribuição à instrumentação científica do projeto, desde a parte básica, como baterias para os tanques d’água, ao desenvolvimento de detectores avançados. Ainda no campo de astro-partículas, na última década ele se envolveu também nos projetos CTA, Cherenkov Telescope Array, LATTES, Large Array Telescope for Tracking Energetic Sources, e SWGO, The Southern Wide Field Gamma-Ray Observatory.

De 2009 a 2013, Shellard foi Vice-Presidente da SBF na gestão de Celso Pinto de Melo, outro colega que ele também muito admirava e estimava. Juntos trabalharam incansavelmente em várias iniciativas para promover a física brasileira, como o estabelecimento do programa de intercâmbio com a American Physical Society, o fortalecimento da Olimpíada Brasileira de Física, o estudo aprofundado sobre a física e o desenvolvimento nacional, o estabelecimento do programa de estágio de professores de ensino médio no CERN, com participação essencial do Shellard, e a iniciativa para criação do Mestrado Profissionalizante de Ensino de Física, em colaboração com a CAPES. Embora a implantação do mestrado só tenha sido consolidada em minha gestão, devemos a iniciativa a eles, que souberam acolher as sugestões de vários colegas da área de ensino. Shellard tinha enorme apreciação por esse programa, em particular por demonstrar de forma assertiva o envolvimento da SBF na melhoria do ensino de física no país.

Sua dedicação à importância da divulgação da ciência junto à sociedade ficou materializada para sempre no notável Mural Grafite da Ciência que foi pintada em uma parede do CBPF, durante sua gestão, na Rua Lauro Müller, no Botafogo – http://www.grafite-ciencia.cbpf.br/ . Shellard gostava de me provocar dizendo que, apesar de ter estudado em escola católica, era um ateu convicto; mas, se ainda fosse religioso, sua visão de inferno era passar a eternidade corrigindo provas. Querido amigo, tenho certeza de que não estás a corrigir provas, com teu grandioso espírito estás em outra dimensão, saboreando o domínio do conhecimento que sempre almejastes em vida, fazendo parte do Mural do CBPF.

Ricardo Galvão