Ao ouvir os lamentos de estudantes a respeito das matérias ministradas nas escolas, é fácil ser confrontado com questionamentos do tipo “o que isso tem a ver com minha vida? Pra que servirá?”. Em parte, isso pode ser lido como uma consequência da forma com a qual as ciências são apresentadas em sala de aula. Na Física, em especial, centrada na apresentação e “aplicação” de fórmulas e mais fórmulas, e na memorização de macetes para garantir o acerto de cada questão dos livros e apostilas. Essa perspectiva ainda é comum nas escolas e acarreta uma única resposta ao enfrentamento cotidiano dos jovens: “serve para passar no vestibular”.
Ao longo de décadas, a formação de estudantes pouco trouxe relação com a ciência, em si, e com os impactos sociais da Física ao longo dos tempos. Uma constatação que provocou o Físico e Filósofo Tiago Ungericht Rocha e resultou na tese “Entre a tradição e a ressignificação da Física escolar: a história da ciência presente nos livros didáticos de Física do PNLD”, pesquisa vencedora da edição de 2021 do Prêmio SBF de Teses, na área de Pesquisa em Ensino de Física.
Professor da educação básica da Rede Estadual de Ensino do Paraná desde 2004, hoje, o pesquisador atua como assessor pedagógico no Colégio da Polícia Militar, em Curitiba. Sua carreira agrega quase 10 anos como professor de Física e Filosofia e cerca de sete anos em função técnico-pedagógica na Secretaria de Estado da Educação do Paraná, dedicados às políticas públicas de currículo, formação de professores e implementação de diretrizes curriculares. Tiago possui mestrado em Educação em Ciências e Matemática, e doutorado em Educação, ambos pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
A inspiração para a pesquisa que culminou na tese premiada veio da experiência desenvolvida na dissertação do professor. O físico levou à sala de aula uma proposta didática baseada na abordagem histórico filosófica da Ciência para desenvolver a temática da Física Quântica, visando assim compreender as possíveis contribuições elencadas na literatura para o ensino de Física, bem como possíveis desafios. Durante o desenvolvimento da proposta em sala de aula, foi surpreendido pelo fato de que alguns alunos demonstraram resistência à forma como os conteúdos foram apresentados. “Foi interessante perceber que, mesmo pensando em ensino inovador, atualizado, nem todos os alunos receberam isso com bons olhos”. Como coloca, houve uma “resistência silenciosa”. Exemplificando, cita a aluna que ignorava o conteúdo, dedicando-se a resolver o “material apostilado do cursinho”, já que a preocupação era o vestibular.
A constatação suscitou uma inquietação em meio às reflexões do professor. “Me fez pensar que a própria cultura em relação à Física, a própria visão da Física na escola é uma visão estereotipada”, afirma. A Física que não fosse acompanhada de fórmulas e macetes, de muitos exercícios, não seria Física na visão do senso comum. E para entender esse fenômeno, viu como oportunidade a possibilidade de se aprofundar em como que a Física escolar se constituiu e em que medida se distanciou da Física acadêmica, da “Física enquanto Ciência”. “A experiência que tive com o mestrado foi extremamente positiva, porque ela permitiu vivenciar isso na prática, e esses pequenos pontos de atenção que foram surgindo, me levaram à necessidade de compreender estruturalmente a Física escolar”. E as escolhas o fizeram voltar os olhos à própria presença da Física no material didático, gerando um questionamento: “por que o livro didático distribuído enquanto política pública, validado, que tem todo um norte de ressignificação curricular, ao mesmo tempo acaba sendo fiel à tradição”?
Para responder aos questionamentos, Tiago realizou um trabalho historiográfico em torno da presença da Física escolar no contexto brasileiro a partir de documentos e legislações educacionais, e no campo da manualística, no qual discutiu questões relacionadas ao “livro didático como fonte privilegiada”. Em especial, nesse último ponto as escolhas metodológicas foram definidas para discutir a presença da História da Ciência enquanto campo potencial para o ensino da Física e para colocar em pauta as políticas de distribuição de materiais didáticos – sobretudo, realizados a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – e como estas têm contribuído no processo de ressignificação da Física. “Quando eu digo ressignificação curricular, eu considero a própria permanência da Física no currículo escolar para romper com aquela visão de Física só para vestibular, mas Física como cultura, como um elemento importante para agregar formação a esses jovens que, em muitos casos, vão ter na escola básica a única oportunidade de ter acesso à ciência”, detalha.
O professor deixa claro que não se defende o fim da abordagem dos conteúdos escolares de Física, pois é possível integrá-los de forma a desenvolver uma aprendizagem que vise a alfabetização científica na perspectiva do letramento como prática social. “Não há nada que impeça de eu trabalhar as leis de Newton, as leis do movimento, mas também com uma perspectiva histórica e filosófica da ciência, estabelecendo relação entre ciência, tecnologia e sociedade”. Para ele, o conteúdo da Física sempre será central, mas o que não pode acontecer é um empobrecimento deste conteúdo, como se vê, o que limita a Física a aplicação de fórmulas sem significado.
A escolha de abordagem por meio da investigação dos materiais relativos ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) foi feita considerando que esses seriam elementos concretos que permitiriam compreender “em que medida recomendações referendadas pela literatura acadêmica acerca do papel da História da Ciência para o ensino da Física, presentes nos documentos curriculares das duas últimas décadas, se expressam nas coleções aprovadas”. Complementarmente, o autor trouxe à tese a análise dos mecanismos em torno da estrutura do PNLD (2012, 2015 e 2018): como foi a forma de apresentação da História da Ciência nos editais de convocação nos quais a Física foi contemplada, a apresentação da História da Ciência – enquanto exigência obrigatória – nas coleções inscritas e o que permanece em evidência nas coleções aprovadas. Porém, para Tiago, o PNLD é apenas uma das tantas barreiras a serem transpostas para a implementação de novas visões da Física em sala de aula.
Para ele, em certa medida, foram contempladas coleções inovadoras nos PNLD, mas ao mesmo tempo muitas publicações tradicionais passaram no processo de avaliação pedagógica. Foi possível constatar a presença de pesquisadores de Física fazendo avaliação de livros didáticos destinados à escola básica, não apenas de pesquisadores do Ensino de Física. Uma possível consequência disso se revelou, segundo Tiago, no fato de que “coleções mais tradicionais acabaram sendo escolhidas pelos professores, lá na ponta, o que trouxe um desequilíbrio”. Em sua pesquisa, constatou-se que coleções que inovaram demais, não necessariamente foram as mais escolhidas, o que demonstra uma série de barreiras de difícil ruptura. Apesar do PNLD compor uma cadeia processual com pontos de atenção a serem revistos, para o pesquisador, por meio dele, sua contribuição para o ensino de Física se deu na medida em que livros específicos de Física foram distribuídos, subsidiando o trabalho pedagógico nas escolas públicas, processo interrompido com a implementação da Reforma do Ensino Médio. “É lamentável constatar que, após distribuir livros didáticos específicos das disciplinas escolares do Ensino Médio ao longo de uma década, o PNLD foi reformulado em 2021 e passou a distribuir material por área do conhecimento. Ao mesmo tempo que é livro de todo mundo, não é livro de ninguém”, lamenta ao citar as dificuldades na utilização dos livros de “Ciência da Natureza” por parte de professores de Biologia, Física e Química.
Frente aos desafios impostos à ressignificação curricular da Física no atual contexto, Tiago é otimista e enxerga algumas ações que corroboram nesse sentido, sobretudo na promoção de abordagens baseadas na História da Ciência. “As universidades públicas têm feito um bom trabalho nesse sentido, trazendo essas discussões para o campo da didática” – o que é claramente percebido, em especial, no legado do professor João Zanetic, expoente no campo do Ensino da Física que faleceu em abril deste ano. Além disso o pesquisador sugere o investimento em formação continuada dos professores, “porque nós temos professores que lecionam Física que não necessariamente têm a formação inicial em Licenciatura em Física e mesmo os que tenham, dependendo da trajetória, se não forem incentivados, talvez não busquem por si só essa formação”.
A tese do professor e pesquisador Tiago Ungericht Rocha, está disponível no acervo digital da UFPR, assim como a dissertação “As contribuições da História e Filosofia da Ciência para o ensino de Física Quântica na Educação Básica”. Tiago também foi autor do capítulo “História da Ciência nas coleções didáticas de Física: implicações do processo de avaliação do PNLD”, publicado no livro “Investigaciones sobre libros de texto y medios de enseñanza: contribuciones desde América Latina”, uma publicação conjunta da UFPR, Universidade de Buenos Aires e Universidade Nacional de Luján.
Por Frederico S. M. de Carvalho
Curadoria:
- Glauco dos Santos Ferreira da Silva
- Marta Máximo Pereira
E demais membros da Capef
- Ivanilda Higa (coordenadora)
- João Eduardo Ramos (vice-coordenador)
- Juliano Camillo
Referência:
ROCHA, T. U. Entre a tradição e a ressignificação da Física escolar: a história da ciência presente nos livros didáticos de Física do PNLD. Tese (Doutorado em Educação) – Setor de Educação, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, p. 370. 2019. Disponível em https://acervodigital.ufpr.br/xmlui/bitstream/handle/1884/63009/R%20-%20T%20-%20TIAGO%20UNGERICHT%20ROCHA.pdf?sequence=1&isAllowed=y
Palavras-chave: História da Ciência. História da Física Escolar. Programa Nacional do Livro Didático. Avaliação Pedagógica no PNLD. PNLD.