Em menos de dois anos e meio, o cientista brasileiro passou de figura proeminente na Universidade de São Paulo à herói nacional, título confirmado em 2024 por decreto do governo brasileiro para comemorar os cem anos de nascimento dessa personalidade instigante.
As férias escolares duas vezes ao ano inspiravam o jovem César Lattes não apenas porque ele tinha tempo livre, mas também porque instigavam sua imaginação sobre qual carreira gostaria de seguir quando crescesse: a de professor. É o que conta Antonio Videira, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador-colaborador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF ). Tempo livre, no entanto, foi o que menos conseguiu encontrar o Lattes adulto, que se tornou em menos de dois anos e meio um dos cientistas mais proeminentes do Brasil, e que entrou definitivamente no rol dos heróis nacionais em 2024 por colaborar para a inauguração da física de partículas no mundo, além da criação do CNPq e do estímulo fundamental à inauguração do próprio CBPF.
Lattes nasceu em 11 de julho de 1924 em Curitiba, no Paraná. O nascimento desse grande físico será comemorado no simpósio “Dos Raios Cósmicos aos Aceleradores de Partículas”, entre 1 a 3 de julho, no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (IFUSP), um evento gratuito que celebrará História e novas conquistas da Física em 2024, como a definitiva participação do Brasil na Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), que opera o maior acelerador de partículas do mundo, o LHC.
A vida de cientista começou com uma ajuda da família. O pai de Lattes era italiano, responsável por uma casa bancária da família em Turin, que inclusive pagava o salário do físico ucraniano Gleb Wataghin que, após a Revolução Russa, imigrou para a Itália e chegou ao Brasil em 1934. O velho Lattes, percebendo que seu filho tinha aptidão para as ciências, incentivou o contato dele com Wataghin. “O Wataghin era uma pessoa muito entusiasmada, muito apaixonada pelo que fazia, pela física em particular. E ele procurava seduzir as pessoas para irem para a carreira de físico. Ele gostava tanto de física que os seus dois filhos acabaram também abraçando a carreira”, lembra Videira.
Uma vez em São Paulo, Lattes foi aprovado no curso de física na Universidade de São Paulo, ampliando o contato com Wataghin, mergulhando nas águas da física teórica. Mas Lattes, que já havia criado com o filho de Wataghin , Andrea Wataghin, e Ugo Camerini uma câmera de Wilson no Instituto de Física da USP, usando recursos próprios, acabou se apaixonando pela física experimental e o estudo dos raios cósmicos.
Ana Maria Ribeiro de Andrade, autora do livro “Físicos, Mésons e Política – A Dinâmica da Ciência na Sociedade”, conta que Lattes decidiu mudar de área de atuação por influência de Giuseppe Occhialini, italiano que estava no Brasil desde 193 7 e que desenvolveu uma câmara de Wilson de grandes proporções, o mesmo equipamento de “Patrick Blackett e, com esse instrumento, confirmaram em 1933, a existência do pósitron e a produção de pares de elétrons resultantes de fótons de alta energia”.
Videira lembra que Lattes se formou em três anos, em um ambiente altamente rico, incentivado por Wataghin, que também formou grandes físicos e líderes como Mário Schenberg, , Marcelo Damy de Souza Santos, Yolande Monteux e Sônia Aschauer. Occhialini, um físico brilhante que fugiu do fascismo e que, durante a Segunda Guerra, chegou a trabalhar como guia no Parque Nacional de Itatiaia para ficar fora dos holofotes, foi fundamental na vida de Lattes. Primeiro, foi o italiano que habilitou Lattes a trabalhar com raios X e a utilizar filmes fotográficos em suas pesquisas, algo que lhe renderia a sua fama; segundo, porque Occhialini busca fazer parte do esforço de guerra na Europa e, por fim, acaba na Universidade de Bristol, na Inglaterra, com o também pacifista Cecil Powell.
Powell, no Laboratório H. H. Wills, desenvolvia uma pesquisa de física nuclear que usava filmes fotográficos especiais para os seus estudos. E Occhialini convida Lattes a participar do projeto, tendo importante contribuição em primeiro momento ao aprimorar o sistema de registro da emulsão fotográfica a fim de evitar o rápido desaparecimento da imagem. Com um apoio financeiro da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Lattes chega a Bristol em 1946, aos 22 anos.
Além do reforço químico das chapas, outra ideia de Lattes e Occhialiani para elevar o tempo de exposição das chapas fotográficas, era a de capturar raios cósmicos em altas altitudes. Como o italiano sairia de férias para os Pirineus, resolveu levar algumas chapas para experiências a 2,8 mil metros acima do nível do mar no Observatoire du Pic du Midi. Era uma corrida para provar a existência do méson pi, partícula responsável pela força fraca, que mantém prótons e nêutrons unidos no átomo, que havia sido previsto teoricamente por Hideki Yukawa em 1934. As observações foram positivas, mas era preciso ir além. Lattes convence o Departamento de Geografia de Bristol e consegue apoio para fazer a mesma experiência a 5,6 mil metros acima do nível do mar em Chacaltaya, na Bolívia. E, em passagem pelo Brasil, usou o microscópio do laboratório de Joaquim Costa Ribeiro, descobridor do Efeito Termodielétrico. “A emoção foi coletiva”, conta Ana Maria Ribeiro de Andrade sobre a confirmação da existência do méson pi, que exigiu ainda novas análises em Bristol e um processo amplo de defesa da descoberta diante da comunidade científica, em 1948.
“Com a descoberta Chacaltaya, Lattes, Occhialini e Powell se sentiram seguros o suficiente para afirmar que o méson existia. E, com isso, a física ganha esse ramo chamado hoje de física de altas energias, mas na segunda metade do século passado era chamado de física de partículas elementares. Uma nova área da física começou a se consolidar, separando-se da física nuclear, que até então era a área da física que dava conta da estrutura do núcleo atômico, das suas interações, das partículas constituintes. E, finalmente, muitos outros mistérios”, explica Videira.
Mas Lattes não ficou em Bristol, levando o físico Niels Bohr a questionar o físico brasileiro por quê deixaria o laboratório de Powell “no melhor da festa”, devido à comprovação definitiva do méson pi e dos benefícios que o laboratório poderia obter para novas pesquisas. Ao saber que havia um cíclotron em Berkeley que produzia mésons pi artificialmente, Lattes enfrenta uma dura prova para conseguir chegar ao laboratório da Universidade da Califórnia, comandado por Ernest Orlando Lawrence. E a dificuldade é fácil de se r explicada: foi no cíclotron de Berkeley que o urânio foi enriquecido para as bombas nucleares usadas no teste no deserto americano e em Hiroshima, segundo o livro de Ana Maria Ribeiro de Andrade. Videira explica que Lattes consegue fazer um ajuste na máquina para conseguir produzir os píons e inaugura não apenas a era da física de partículas, mas também “a figura do usuário, a pessoa que vai usar a máquina sem saber como ela funciona, mas sabe o que procura, sabe o que quer buscar nessa máquina”. “É muito interessante, porque o Lattes está aí, nessa física que está abrindo as portas. É uma física que vai ser também o exemplo, de uma certa maneira, reconhecida pelo lado pacífico da Big Science. O lado militar, negativo da Big Science, é a bomba atômica”, diz o colaborador do CPBF.
Quando retorna ao Brasil, Lattes já era visto como herói nacional, como expoente da física atômica, atraindo o interesse não apenas do governo e de empresários, que ajudaram o físico a colaborar na criação do CNPq e do próprio CBPF, como conta Alfredo Tiomno Tolmasquim, pesquisador do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), no artigo “O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas durante a ditadura civil-militar: resistências e acomodações”, publicado na Revista Brasileira de Ensino de Física e tema de entrevista no Boletim SBF. A ascensão de Lattes foi extraordinária, o que mostra a sua sagacidade e o seu emprenho para o desenvolvimento da ciência. “Em dois anos, dois anos e meio, o Lattes saiu de um jovem promissor, que havia mostrado suas qualidades em São Paulo, para uma grande liderança. Lattes não tem 25 anos, vamos dizer, está com 24 anos, e já é uma personalidade”, diz Videira.
(Colaborou Roger Marzochi)