No último dia 3 de outubro, faleceu, aos 75 anos, o físico Affonso Augusto Guidão Gomes, pesquisador titular do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro (RJ). Quem teve a sorte de com ele conviver – como foi o meu caso –, sabe que, certamente, muitas qualidades poderiam lhe ser atribuídas, tanto como pesquisador quanto figura humana. Algumas delas: pioneiro da física da matéria condensada moderna no Brasil, ser humano dos mais íntegros, amigo leal e professor generoso, sempre pronto a dividir seu amplo espectro de cultura com seus alunos.

Nascido em 1941, na cidade do Rio de Janeiro, Affonso – como era conhecido pelos vários amigos e colegas – seguiu para a capital paulista no final da década de 1950, para fazer sua graduação no Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP). Em seguida, no início da década de 1960, por iniciativa de Mário Schenberg (1914-1990), seguiu para a Universidade de Paris-Sul, em Orsay (França), onde obteve seu doutorado em 1967 – possivelmente, o primeiro Doctorat D’Etat da física brasileira.

Em Orsay, Affonso teve como orientador de sua tese o deão da universidade, o físico Jacques Friedel (1921-2014), que, por sua vez, havia sido orientado pelo pioneiro da física da matéria condensada no Reino Unido, Nevill Mott (1905-1996), Nobel de Física de 1977 – Friedel casou-se com a filha de Mott.

De volta ao Brasil, Affonso passou a ser parte do que pode ser classificado como a 1ª geração de ‘modernos’ da área de física da matéria condensada, ao lado, por exemplo, de Sergio Rezende – ex-ministro da Ciência e Tecnologia e professor emérito da Universidade Federal de Pernambuco – e Roberto Leal Lobo e Silva Filho, ex-reitor da USP.

Affonso passou a trabalhar com áreas de fronteira – e muitas praticamente inéditas – no Brasil, como a teoria de campos em matéria condensada e a teoria de integrais funcionais para tratar sistemas em temperaturas finitas. Mais tarde, dedicou-se a temas como supercondutividade, sistemas fortemente correlacionados e sistemas desordenados. No entanto, ganhou renome nacional e internacional com seus trabalhos sobre magnetismo de sistemas metálicos, área na qual era considerado um teórico agudo e de primeiríssima linha, sempre preocupado com a interação de seus trabalhos com resultados experimentais.

Sua entrada no CBPF, deu-se por intermédio de um então pesquisador da casa, Jacques Danon (1924-1989), que, à época, o classificou como “brilhante”. Com apenas 26 anos de idade, Affonso começou aqui sua carreira, ainda na década de 1960, como pesquisador titular.

No CBPF, Affonso criou um grupo de colaboradores treinados à la Friedel e Mott, ou seja, fazendo uma física teórica sempre conectada aos trabalhos experimentais, analisando dados, desenvolvendo modelos e propondo experimentos. Eu estava entre aqueles então jovens físicos – Affonso havia sido meu orientador no mestrado (1974) e doutorado (1978).

Os anos de 1975 e 1976 não foram dos melhores para o CBPF, que, até então, era uma sociedade civil desde sua fundação, em 1949. Uma crise financeira assolou o Centro, levando a longos atrasos no pagamento de salários. Vale lembrar que foi nesse período que o CBPF foi incorporado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, passando a ser, desde então, um órgão federal de pesquisa.

Nesse período, Affonso retornou à França – talvez, motivado pela falta de perspectiva em relação ao destino do CBPF. Lá, tornou-se amigo do físico Albert Fert, ganhador do Nobel de Física de 2007 pela descoberta do fenômeno da magnetorresistência gigante, que permitiu aumentar consideravelmente a capacidade de armazenamento de dados em discos rígidos, por exemplo.

No início da década de 1990, Affonso passou cerca de dois anos em Porto Alegre, como professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde deixou não só alunos e discípulos, mas também amigos de longa data, como ocorreu em sua interação com a Universidade Federal de Santa Maria (RS). Nunca escondeu o fato de que passou a gostar imensamente daquele estado e pensou seriamente em se transferir para lá. Foi também professor visitante na Universidade Estadual do Norte Fluminense.

Entre seus orientados e discípulos, estão Mucio Continentino, Paulo Bisch, Lívio Amaral, Nílson Antunes de Oliveira, Celso Arami Marques da Silva, Rubem Sommer, Aglaé Cristina Navarro de Guimarães, Laércio Cabral Lopes, Fábio Rocha, Oscar Leonel Teles de Menezes, José Galvão Pisapia Ramos e Ximenes Alexandrino da Silva.

Já pesquisador sênior, teve a coragem de mudar completamente de área, passando a se dedicar à aplicação da física de sistemas dinâmicos à ecologia. Seu livro Modelagem de ecossistemas: uma introdução – escrito com coautoria com a pesquisadora Maria Cristina Varriale, do Instituto de Matemática da UFRGS –, além de referência na área, é reconhecido como obra pioneira no assunto – mesmo no cenário internacional. Seu texto Introduction to the physics of metallic systems (CBPF, 1994) tornou-se referência na área e ainda usado por muitos docentes de física de estado sólido.

Desde 1979, foi membro titular da Academia Brasileira de Ciências – na qual atuou longamente como Secretário Geral (1993-1997) e editor dos Anais da ABC ­­–, bem como, a partir de 1996, da TWAS (Academia de Ciências dos Países em Desenvolvimento). Era ‘Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico’ (1995) e ganhou a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico’ (2000), ambos títulos conferidos pela Presidência da República do Brasil.

Nascido em 3 de março de 1941, Affonso foi casado por décadas com Maria Carlota, companheira sempre presente. Exemplo de sua generosidade e seu desprendimento é o fato de ter doado em vida seus bens para uma fundação educacional para crianças.

Affonso deixa profunda saudade nos que com ele conviveram. Reconforta-nos, porém, o fato de que sua memória, como cientista e ser humano, permanecerá vívida para os vários discípulos que hoje estão atuando na pesquisa avançada em matéria condensada no Brasil. E, de certa forma, prosseguindo com sua obra.

Amós Troper
Pesquisador Emérito
Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas