O Boletim da SBF destaca nesta edição, através de artigo do Prof. Pedro de Holanda, do Instituto de Física Gleb Wataghin da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a quem agradecemos, o tema do Prêmio Nobel em Física de 2015.
O Prêmio Nobel em Física de 2015, concedido para os professores Takaaki Kajita e Arthut B. McDonald, destaca a descoberta da oscilação de neutrinos, que requer que neutrinos tenham massa não nula. Como no Modelo Padrão de Partículas Elementares os neutrino não possuem massa e a preservação do número leptônico é uma simetria perfeita, os resultados dos experimentos conduzidos por Kajita e McDonald requerem uma modificação no Modelo.
O mecanismo de oscilação de neutrinos foi proposto em analogia com a oscilação de Káons neutros, onde uma mistura de estados de interação e estados de massa bem definida geram um fenômeno de oscilação na detecção dos estados de interação. Algo análogo foi proposto no setor de neutrinos. Os neutrinos que interagem com a matéria são produzidos e detectados juntamente com os léptons carregados correspondentes, o elétron, múon e tau, e portanto são criados e detectados em um destes “sabores”, neutrino eletrônico, muônico e tauônico. Mas se estes neutrinos são uma mistura de neutrinos com massa bem definida, uma oscilação no sabor do neutrino pode ser induzida durante sua evolução.
Tomando por simplicidade a existência de apenas dois sabores de neutrinos, a probabilidade com que esta transição de um sabor a para um sabor b ocorre pode ser calculada como:
onde o parâmetro q descreve a mistura entre os estados, m1,2 é a massa dos neutrinos, E é sua energia e L é a distância percorrida pelo neutrino. Para testar este mecanismo é necessário dispor de um fluxo de neutrinos com sabores definidos e observar uma mudança nestes sabores após uma certa distância. O primeiro contexto onde a possibilidade de realizar este teste foi considerada envolveu neutrinos solares.
Neutrinos Solares
As primeiras propostas de que oscilações de sabor poderiam estar presentes na evolução dos neutrinos produzidos no Sol surgiram praticamente em concomitância com a primeira proposta experimental de detecção de tais neutrinos. Em 1968 a colaboração experimental chefiada por Raymond Davis publicava seus primeiros resultados para a medida do fluxo dos neutrinos solares, através de detecção de neutrinos eletrônicos por decaimento beta inverso em átomos de Cl. O experimento localizava-se na mina de Homestake, em Dakota do Sul, EUA. Uma vez que todos os neutrinos produzidos no Sol são eletrônicos, e o canal de detecção deste experimento é sensível somente a este sabor, uma incompatibilidade entre previsão e resultado experimental poderia indicar uma conversão de sabor. No ano seguinte Gribov e Pontecorvo já analisavam estes resultados sob a ótica de oscilação de neutrinos, e embora muitos detalhes sobre como esta oscilação atua tenham sofrido modificações, diversos efeitos desta oscilação já estavam presentes nesta primeira análise.
Um ponto destacado por Gribov e Pontecorvo se refere ao comprimento de oscilação característico da transição de sabor. Caso este comprimento fosse menor que a região de produção de neutrinos, o termo oscilante presente na probabilidade de conversão não seria detectável, uma vez que uma média em diversos comprimentos de oscilação deveria ser contabilizada para o cálculo da probabilidade final. De fato este é o caso, e experimentos de detecção de neutrinos solares podem fornecer resultados apenas sobre uma supressão global do fluxo de neutrinos eletrônicos.
Uma análise apressada pode concluir que experimentos de neutrinos solares não seriam sensíveis à massa dos neutrinos, uma vez que esta informação está contida no termo de oscilação. Porém Wolfenstein em 1978 e Mikheyev e Smirnov em 1985 descreveram como a interação dos neutrinos com a matéria solar invertem esta conclusão, mostrando que transições ressonantes de sabor podem ser induzidas pela interação da matéria com o neutrino, e a energia do neutrino onde esta ressonância ocorre depende de sua escala de massa. Portanto neutrinos solares podem, com experimentos cuidadosamente desenhados, testar o mecanismo de oscilação de sabor.
Neutrinos Atmosféricos
Uma outra fonte abundante de neutrinos consiste na interação de raios cósmicos com a nossa atmosfera. Um dos principais constituintes desta radiação cósmica são prótons, que ao interagirem com átomos no alto da nossa atmosfera produzem píons. A cadeia de decaimento do píon consiste inicialmente na produção de um múon e um neutrino muônico. Em seguida o múon também decai, produzindo um elétron e dois neutrinos, um neutrino eletrônico e um muônico. O balanço geral destas interações em termos de fluxo de neutrinos é a produção de dois neutrinos muônicos para cada neutrino eletrônico. Este fluxo de neutrinos, criado no topo da atmosfera, é denominado de fluxo de neutrinos atmosféricos.
No início da década de 1990 foram desenvolvidos alguns experimentos dedicados a testar a estabilidade do próton, que em teorias de grande unificação poderiam decair. Porém para se conseguir obter um sinal claro era necessário entender e subtrair todas as outras interações que poderiam se confundir com um sinal de decaimento do próton. Devido ao seu fluxo intenso, os neutrinos atmosféricos compunham um fundo importante de ruído, e portanto detecções sistemáticas começaram a ser realizadas. Já com os primeiros resultados se obteve uma indicação de que tais neutrinos não estavam sendo detectados na proporção esperada pelos cálculos teóricos.
O experimento de Kamiokande se destacou como um destes experimentos pioneiros. Este experimento utiliza água ultra-pura como alvo, e detecta neutrinos através da radiação Cherenkov produzida pelos léptons associados. Por exemplo, um neutrino muônico ao interagir no detector cria um múon energético, com uma velocidade de propagação maior que a da luz naquele material. A frenagem deste múon produz um cone de radiação com uma frequência típica e um ângulo em relação à trajetória do múon bem definido, a radiação Cherenkov. Este cone de luz é detectado por fotomultiplicadoras posicionadas na parede do detector, e tanto a energia do muón como sua trajetória podem ser reconstruídas. Quando é o neutrino eletrônico que é detectado através da produção de um elétron, o cone de radiação Cherenkov é menos definido devido às múltiplas interações do elétron com o meio. É possível portanto diferenciar o sabor do neutrino detectado.
Logo com os primeiros resultados que indicavam uma incompatibilidade entre o modelo teórico e o resultado experimental de detecção de neutrinos atmosféricos, o fenômeno de oscilação de sabor dos neutrinos foi invocado como possível explicação para tal discrepância. Mas estas primeiras medidas eram sensíveis à porção de menor energia do espectro de neutrinos atmosféricos, tipicamente energias menores que 1 GeV. E para estas energias a correlação entre a direção do neutrino e a direção do lépton é baixa, e portanto mesmo que a direção do lépton seja bem reconstruída, não é possível inferir a direção de chegada do neutrino que gerou o sinal. Como um dos parâmetros importantes na oscilação de sabor é a distância de propagação do neutrino, estes primeiros dados não foram suficientes para confirmar a existência deste fenômeno, pois não era possível estabelecer a distância viajada pelo neutrino, se aproximadamente 12 km quando gerado no topo da atmosfera logo acima do detector, ou 13.000 km se gerado no extremo oposto do planeta.
O experimento de Super-Kamiokande foi proposto para ser sensível a uma porção maior do espectro de energia dos neutrinos atmosféricos, extendendo a sensibilidade para valores maiores de energia do neutrino. Para neutrinos com energias maiores que 1 GeV, a correlação entre as direções do neutrino e do lépton produzido na interação aumenta sensivelmente, e é possível reconstruir com alguma precisão a direção de chegada do neutrino detectado, o que possibilitaria a verificação da hipótese da oscilação de sabores.
Super-Kamiokande se baseia no mesmo princípio de detecção de neutrinos utilizado em Kamiokande, sendo 20 vezes maior, o que possibilitou um aumento considerável no número de eventos, uma maior distribuição destes eventos em energia, e uma melhor discriminação do tipo de evento. A colaboração apresentou os resultados relativos a 535 dias de coleta de dados na “18th International Conference on Neutrino Physics and Astrophysics”, realizado em Takayama, Japão, próximo à mina de Kamioka. Para léptons com energia na região de alguns GeV’s, os dados experimentais mostravam claramente que eventos associados a neutrinos eletrônicos não dependiam do ângulo reconstruído da trajetória do elétron, enquanto os eventos associados a neutrinos muônicos indicavam claramente que o fluxo daqueles originados logo acima do detector concordava com as previsões teóricas, enquanto aqueles que chegavam ao detector por baixo, tendo sido criados portanto na atmosfera do outro lado do planeta, apresentavam uma supressão de 50% em relação à previsão.
A interpretação de tais dados à luz da oscilação de neutrinos indicava que neutrinos muônicos estavam desaparecendo do fluxo inicial de neutrinos, e como não havia um aumento correspondente no fluxo de neutrinos eletrônicos, esta oscilação deveria ocorrer para um terceiro sabor de neutrino, os neutrinos do tau. Além disso pôde-se calcular com precisão a escala de distância na qual esta conversão começa a ocorrer, o que permitiu inferir a escala de massa dos neutrinos, ou para ser mais preciso, uma diferença entre quadrados da massa de duas famílias.
De volta aos neutrinos solares
O experimento de Super-Kamiokande também publicou dados referentes à detecção de neutrinos solares. Porém como já discutido, devido às enormes distâncias viajadas pelo neutrino produzido no Sol, é impossível medir qualquer padrão de oscilação, e experimentos de detecção de neutrinos solares são sensíveis apenas a médias na conversão de sabor para várias oscilações. Além disso neutrinos provenientes do Sol não têm energia suficiente para serem detectados através das mesmas reações utilizadas para se detectar neutrinos atmosféricos. A técnica utilizada consistiu no espalhamento elástico dos neutrinos com elétrons, e a detecção da radiação Cherenkov produzida por tal elétron. Este tipo de detecção é sensível principalmente a neutrinos eletrônicos, porém não distuingue o sabor do neutrino observado. Apesar de Super-Kamiokande indicar uma supressão do fluxo destes neutrinos, em concordância com os experimentos prévios de detecção de neutrinos solares, não forneceu elementos suficientes para estabelecer que o mecanismo de oscilação de sabor era o responsável pela supressão do fluxo observado.
O experimento SNO foi proposto para suprir estas lacunas. Neste experimento o alvo escolhido foi água pesada, formada por dois átomos de deutério e um de oxigênio, D2O, o que permitiu se estudar dois novos canais de detecção além daquele utilizado por Super-Kamiokande. Um destes canais é sensível somente à neutrinos do elétron, onde o neutrino converte o nêutron do núcleo de deutério em próton, e um elétron é produzido. No segundo novo canal de detecção, um neutrino ao interagir com o núcleo do deutério quebra este núcleo em seus constituintes, um próton e um neutron, sem produção de elétrons. Este canal é igualmente sensível a todos os sabores dos neutrinos.
Através destes três canais de detecção funcionando simultaneamente SNO pôde pela primeira vez medir o fluxo total de neutrinos que vinham do Sol, independente de seu sabor, e a fração deste fluxo total composta por neutrinos eletrônicos. Os resultados foram conclusivos, o total de neutrinos chegando ao detector concordava com a previsão teórica calculada a partir dos modelos solares, porém somente um terço deste fluxo compõe-se de neutrinos eletrônicos. Dois terços do fluxo, portanto, são compostos por neutrinos muônicos e tauônicos. A oscilação de sabor de neutrinos estava estabelecida portanto também para neutrinos solares.
Prosseguimento
Depois destes dois marcos na física experimental de neutrinos, mais dados destes dois experimentos e de novas propostas experimentais confirmaram o panorama hoje tido como padrão para a mistura entre neutrinos. As três famílias de neutrinos possuem massas pequenas, e diferenças de massa ao quadrado da ordem de
10-5 a 10-3 eV2. Dos três ângulos de mistura que ligam as bases de interação e de massa são grandes, e um é pequeno. Mas como sempre na ciência, a busca das propriedades fundamentais do neutrino não se encerrou com estes resultados, e ainda há muito o que se investigar sobre esta elusiva partícula!