Um estudo recente investiga como a interação entre matéria escura e energia escura, dois dos componentes mais misteriosos do Universo, pode oferecer uma explicação para um dos maiores problemas em aberto na cosmologia moderna: a discrepância nos valores observados da taxa de expansão do Universo, conhecida como constante de Hubble (𝐻₀). A pesquisa, conduzida por cientistas que combinaram dados do satélite Planck-2018 e do Dark Energy Spectroscopic Instrument (DESI), explorou modelos de energia escura interagente (IDE). Esses modelos propõem que a matéria escura transfere energia e momento para a energia escura, o que influenciaria a evolução do Universo em larga escala e seus processos físicos.

“Uma novidade do nosso trabalho é que mostramos uma indicação estatística de que essa interação (entre matéria e energia escuras) pode existir com mais de 95% de confiabilidade estatística”, explica o cientista Rafael Nunes, professor adjunto do Departamento de Astronomia do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), um dos autores do artigo Interacting Dark Energy after DESI Baryon Acoustic Oscillation Measurements, publicado em 18 de dezembro de 2024 na Physical Review Letters (PRL). Entre os coautores do estudo está o colombiano Miguel Sabogal, aluno de mestrado da UFRGS sob a orientação do professor Rafael Nunes.

O professor Rafael Nunes defende um novo caráter físico para explicar a matéria e energia escuras.
O professor Rafael Nunes defende um novo caráter físico para explicar a matéria e energia escuras.

A análise dos autores sugere que essa interação entre matéria e energia escuras, que juntas compreendem 94% de todo o Universo (26% de matéria escura e 68% de energia escura), resulta em uma taxa de expansão atual de 𝐻₀ = 70,8 km/s/Mpc. Esse valor está mais próximo das medições baseadas na “escada de distâncias” locais realizadas pela Colaboração SH0ES. A Colaboração SH0ES (Supernovae and H0 for the Equation of State, em inglês) é um grupo de pesquisadores dedicado a medir a constante de Hubble (𝐻₀), que descreve a taxa de expansão do Universo. O principal objetivo da colaboração é calcular esse parâmetro com alta precisão, utilizando observações de supernovas do Tipo Ia como “velas padrão” e distâncias calibradas por estrelas variáveis conhecidas como Cefeidas.

Miguel Sabogal estuda o Universo para entender os seus mistérios.
Miguel Sabogal estuda o Universo para entender os seus mistérios.

Os resultados da Colaboração SH0ES têm gerado um intenso debate na cosmologia porque o valor de 𝐻₀ obtido por eles, cerca de 73-74 km/s/Mpc, é significativamente mais alto do que o valor derivado de medições do fundo cósmico de micro-ondas (CMB), como as feitas pelo satélite Planck, que apontam para 67-68 km/s/Mpc. Essa discrepância, chamada de tensão de Hubble, sugere que pode haver novos fenômenos físicos além do modelo cosmológico padrão.

Função do tempo

Nunes explica que o modelo padrão da cosmologia prevê uma densidade de energia constante para a energia escura (modelo LambdaCDM), mas esse pressuposto não é adequado para explicar algumas observações recentes. De acordo com avanços recentes na literatura, a energia escura deve apresentar um caráter dinâmico. “No modelo LambdaCDM, a densidade de energia da energia escura é sempre constante. Porém, nos nossos modelos de interação no setor escuro, isso não acontece. A densidade de energia escura é uma função do tempo. Isso significa que não podemos mais assumir, digamos, uma constante cosmológica, ou densidade de energia de vácuo, para explicar os 68% de energia escura que compõem o Universo”, afirma.

“Nós vamos precisar de um novo caráter físico para explicar esses conteúdos de matéria e energia escuras. Possivelmente, isso está relacionado ao que chamamos de campo escalar, que consiste em partículas de spin zero. Ou seja, uma grande consequência desse cenário é que, ao abandonar a hipótese do Lambda e considerar uma interação no setor escuro, a energia escura deve ser dinâmica. Talvez a solução mais simples e plausível seja suficiente, embora alternativas mais complexas também possam existir. Às vezes, o mais simples funciona”, afirma o cientista, que nasceu no Rio Grande do Norte e, entre 2018 e 2022, atuou como pós-doutorando e docente na Divisão de Astrofísica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

A abordagem da pesquisa da qual Nunes participou reduz a discrepância entre os valores de 𝐻₀ medidos localmente e aqueles derivados de dados cosmológicos do Planck para cerca de 1,3𝜎, representando um avanço significativo na busca por um modelo que reconcilie essas diferenças. Além disso, a preferência por interações escuras manteve-se consistente mesmo ao incorporar outros dados observacionais, como as idades relativas de galáxias massivas e os módulos de distância de supernovas do Tipo Ia do catálogo Pantheon-Plus.

“Os nossos resultados estão baseados em dados do levantamento DESI (Dark Energy Spectroscopic Instrument), que está em seu primeiro ano de operação, com seis milhões de objetos extragalácticos catalogados. No entanto, daqui a cinco anos, esse número poderá chegar a 35 milhões. Por isso, esperamos, no futuro, obter resultados ainda mais precisos, que podem confirmar ou descartar o modelo LambdaCDM, caso não sejam detectados erros sistemáticos evidentes nos dados”, afirma Sabogal.

Desafios – Embora promissor, o modelo IDE apresenta alguns desafios. Ele prevê valores mais baixos para a densidade de matéria (Ω𝑚) e mais altos para o parâmetro 𝜎₈, que descreve a amplitude das flutuações na estrutura do Universo em grande escala. Esses valores podem entrar em conflito com outras medições cosmológicas, exigindo estudos adicionais para avaliar sua consistência com os dados de formação de estruturas em grande escala.

De acordo com os pesquisadores, o modelo IDE oferece uma alternativa viável ao modelo padrão ΛCDM (matéria escura fria com constante cosmológica), especialmente no contexto das medições de 𝐻₀. No entanto, uma análise mais detalhada das previsões do modelo é necessária para validar sua adequação como uma explicação geral para o comportamento do Universo.

A possibilidade de interação entre matéria escura e energia escura não apenas adiciona complexidade ao entendimento do Universo, mas também abre novas direções para explorar as propriedades dessas entidades misteriosas que compõem a maior parte do conteúdo energético do cosmos. Apesar dos desafios, poucas coisas são tão estimulantes quanto o ato de fazer o que se ama. “Eu estudo o Universo por uma necessidade de entender como ele funciona, para responder por que estou aqui. Desde pequeno, essa tem sido minha razão para estudar o Universo”, conclui o aluno de mestrado Miguel Sabogal.

(Colaborou Roger Marzochi)