O que é real e “imaginário” tem um papel fundamental na teoria quântica, base da física moderna para explicar fenômenos em escala atômica. Isso porque os cientistas utilizam em seus cálculos números reais e, em alguns momentos, também números complexos que têm uma parte chamada de imaginária. A isso se dá o nome de “imaginaridade”, correspondendo ao uso de números complexos com parte imaginária diferente de zero nas equações. Essa característica da teoria quântica não é apenas um detalhe matemático, mas uma propriedade que pode ser usada como recurso em diversas aplicações.
Mas qual o grau de utilização de números complexos nessas equações, quão longe é possível chegar usando apenas números reais e quais são os momentos em que a imaginaridade não pode ser descartada? Foi para responder essas questões que foi publicado no dia 8 de novembro de 2024 na revista Physical Review Letters (PRL) o artigo “Unitary-Invariant Witnesses of Quantum Imaginarity”, com a coautoria de Ernesto Galvão, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do International Iberian Nanotechnology Laboratory (INL), em Braga (Portugal). O estudo contou ainda com a participação do brasileiro Rafael Wagner, aluno de doutorado do Centro de Física, Universidade do Minho (Braga, Portugal).
“A pergunta se é necessário mesmo o uso de números complexos para obter todas as vantagens da mecânica quântica é uma pergunta ainda em aberto na ciência”, explica Galvão, em entrevista ao Boletim SBF. Segundo o cientista, pesquisas revelam que é possível realizar muitas operações utilizando-se apenas números reais, embora em certo momento, haja necessidade da inclusão de números imaginários ao processo.
De acordo com artigo na Physics, dois estudos independentes demonstraram que números complexos são essenciais na formulação da mecânica quântica para reproduzir resultados experimentais. As equipes de Ming-Cheng Chen e Zheng-Da Li realizaram experimentos envolvendo redes quânticas simples, onde duas fontes distribuíam qubits emaranhados para três observadores. Os resultados obtidos não puderam ser explicados por uma teoria quântica baseada apenas em números reais, evidenciando a necessidade de uma abordagem complexa. Esta foi praticamente a mesma conclusão de Miguel Navascués, Institute for Quantum Optics and Quantum Information in Vienna, segundo artigo publicado em 2022 na Physics Today.
No contexto quântico, a “imaginaridade” de um estado é a medida de quanto ele depende da parte imaginária dos números complexos. Em termos técnicos, um estado quântico possui imaginaridade se sua matriz densidade — uma ferramenta usada para descrever o estado — não tiver apenas números reais quando representada em uma base específica. Isso significa que a parte imaginária desempenha um papel importante nas propriedades do estado.
A imaginaridade é útil em várias aplicações tecnológicas. Ela pode ajudar a distinguir estados quânticos semelhantes, criar sequências de números que parecem aleatórias (pseudorandomicidade) e melhorar medições precisas, como as usadas em relógios atômicos e sensores quânticos. Identificar e medir essa imaginaridade é, portanto, essencial para aproveitar seu potencial.
Galvão e os seus colegas propuseram uma nova maneira de identificar a imaginaridade de conjuntos de estados quânticos, sem depender de uma base fixa. Normalmente, é preciso escolher uma base específica para verificar a imaginaridade, o que limita a flexibilidade do processo. A nova abordagem utiliza propriedades que permanecem as mesmas independentemente da base escolhida, chamadas de “propriedades invariantes unitárias”.
O trabalho focou em dois cenários: conjuntos de três e quatro estados puros, que são estados quânticos descritos de forma idealizada sem mistura com outros estados. Para três estados, os pesquisadores conseguiram caracterizar completamente os valores invariantes que indicam imaginaridade. Para quatro estados, eles fizeram uma caracterização parcial, mas descobriram que é possível identificar a imaginaridade usando medições simples que medem a semelhança entre pares de estados.
Galvão exemplifica usando a ideia de vetores. Segundo ele, em mecânica quântica, vetores são usados para representar um elétron ou um fóton, por exemplo. No entanto, o vetor não está medindo a posição da partícula, mas descreve tudo o que pode influenciar qualquer coisa que se possa medir sobre a partícula no futuro. “É isso que a gente chama de estado da partícula”, explica.
“Se há uma parte real a e uma imaginária, o que mostramos nesse artigo é que tipo de previsão a mecânica quântica faz que ficaria limitada, ou que não atingiria o potencial completo, se você restringir os estados a serem reais. Então, quando você diz, olha, vou proibir números complexos nesses vetores que descrevem os estados quânticos, então você está falando de uma restrição aos estados que você consegue preparar”, exemplifica.
“Se você restringe dessa forma, você ainda consegue fazer computação quântica, por exemplo, que é uma aplicação boa dos sistemas quânticos, de forma eficiente. Ou seja, você não perde muita coisa se for proibido de usar esses estados em que aparecem números complexos. Mas existem alguns resultados indicando a importância de números complexos em algumas aplicações.”
Galvão avalia que essa abordagem é considerada acessível para experimentos reais, já que depende de medições que podem ser feitas com a tecnologia atual. Isso abre caminho para o uso da imaginaridade como recurso em aplicações práticas, sem as limitações impostas pela escolha de uma base fixa. Por isso, a pesquisa avança no entendimento de como as propriedades matemáticas fundamentais da teoria quântica podem ser exploradas de forma concreta, contribuindo para o desenvolvimento de novas tecnologias.
(Colaborou Roger Marzochi)