Você já se perguntou por que o céu é azul? A resposta está em um fenômeno chamado “espalhamento Rayleigh”. Agora, imagine que esse mesmo fenômeno, que pinta o céu de azul, seja a chave para descobrir novas fases da matéria em sistemas de luz laser. É exatamente isso que pesquisadores brasileiros e chineses exploraram em seu mais recente estudo, trazendo à tona um mecanismo inédito de se obter uma “fase vítrea” baseada em espalhamento Rayleigh em sistemas fotônicos.
Isso é o que revelam pesquisadores do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e da University of Electronic Science and Technology of China, em Chengdu, no artigo “Replica symmetry breaking in 1D Rayleigh scattering system: theory and validations”, publicado em setembro de 2024 na revista Light: Science & Applications, do grupo Nature. O artigo ganhou destaque por ter sido a capa da edição e selecionado como “2024 Editors’ Highlight”.
“A descoberta foi possível pelo uso de uma técnica mais precisa de medição das variações de fase da luz que foi utilizada pelos pesquisadores chineses, que realizaram as medidas experimentais. A interpretação teórica dos resultados experimentais foi feita em conjunto conosco. Essa foi a primeira demonstração de uma fase vítrea fotônica baseada no mecanismo de espalhamento Rayleigh”, explica o professor da UFPE Ernesto P. Raposo que, junto com o cientista brasileiro Anderson S. L. Gomes, da mesma instituição de ensino e pesquisa, assinam o artigo com os cientistas chineses.
Mas, para entender essa história, é preciso saber como surgiu parte da inspiração da ideia, que veio do magnetismo, de onde surgiu a expressão “vidro de spins”. A quebra de simetria de réplicas (“replica symmetry breaking”, RSB) é um conceito importante em sistemas complexos nesse tema, porque réplicas idênticas de um sistema podem se comportar de maneira diferente sob certas condições.
Imagine um material com um conjunto de partículas com uma propriedade chamada de spin, que pode ser explicado como o momento magnético intrínseco do elétron. Numa visão simplificada, os spins do material em temperaturas bastante altas apontam aleatoriamente em todas as direções e mudam de direção rapidamente. Conforme a temperatura do sistema é gradualmente reduzida, ocorre uma transição de fase em que esses spins “congelam” em direções aleatórias, resultando em uma fase chamada de “vidro de spins”. Esse comportamento reflete a complexidade intrínseca do sistema. Em 2021, Giorgio Parisi foi premiado com o Nobel de Física justamente por desvendar como a desordem e as flutuações afetam sistemas complexos, de escalas microscópicas até planetárias.
Desde 2006, a fase vítrea com RSB, que antes era uma peculiaridade dos sistemas magnéticos, também passou a ser prevista teoricamente em sistemas fotônicos, tendo sido de fato observada pela primeira vez em 2015. Bingo! Esse avanço abriu caminho para novas pesquisas sobre as semelhanças entre os regimes ópticos e magnéticos.
Em sistemas fotônicos, os cientistas não usam expressões referentes aos spins magnéticos, mas sim aos modos ópticos e ao comportamento das ondas de luz. Quando um sistema fotônico está em uma “fase vítrea”, isso significa um estado em que as propriedades das ondas de luz, como suas fases e amplitudes, estão em um estado desordenado semelhante ao dos vidros de spins. “É uma analogia em que o spin no material magnético seria correspondente à amplitude da onda eletromagnética”, explica Raposo, em entrevista ao Boletim SBF.
O desenvolvimento desse fenômeno foi possível pela criação de lasers nos quais os feixes de luz não são totalmente coerentes, emitindo radiações eletromagnéticas em diferentes fases. Eles são chamados de “lasers aleatórios”, que não precisam de uma cavidade ressonante para amplificar e emitir luz coerente. Em vez disso, eles funcionam com a luz sendo espalhada de forma aleatória por um meio material que amplifica o sinal. Os pesquisadores chineses utilizaram no experimento uma fibra ótica convencional, e propagaram a luz em uma fibra ótica de 15 km de extensão para conseguir obter esse efeito explorando o espalhamento Raman como meio ativo e o espalhamento Rayleigh na própria fibra, explica Gomes.
Gomes faz uma outra analogia com os sistemas magnéticos: os modos ópticos laser equivalem aos spins e a potência de excitação do sistema corresponde ao inverso da temperatura. “O que seria a temperatura no material magnético corresponde ao inverso da potência de excitação do laser.”
No estudo publicado, foi revelado um mecanismo inédito para a fase vítrea fotônica RSB. É neste ponto que entra a explicação sobre a cor do céu: essa descoberta se baseia no fenômeno do espalhamento Rayleigh em um meio de ganho Raman de uma fibra de laser aleatório, também conhecida como “random fiber laser” (RFL). No espalhamento Rayleigh, a luz é dispersa por partículas muito menores que o comprimento de onda, como moléculas de oxigênio e nitrogênio presentes na atmosfera, o que cria um comportamento aleatório que influencia a propagação da luz. Exatamente o fenômeno responsável pela cor azul do céu, às vezes rara devido à poluição atmosférica.
Para alcançar essas conclusões, foi essencial realizar medições experimentais das variações de fase das ondas de luz com extrema precisão. Esse nível de detalhamento permitiu que os dados fossem interpretados com base em um modelo teórico sofisticado, baseado em uma versão modificada da equação de Schrödinger não-linear. A equação de Schrödinger é fundamental na física quântica, descrevendo o comportamento quântico de partículas em diferentes condições.
O que também torna esse estudo relevante é a sua capacidade de abrir caminho para futuras aplicações tecnológicas. Sistemas complexos, como os lasers aleatórios, têm potencial de impactar o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, sensores, imagens e até novos tipos de materiais. “Você consegue fazer sensores de temperatura com esse tipo de material e aprimorar o imageamento de exames na medicina. Mas há também um avanço importante na ciência básica”, diz Gomes.
O trabalho abre novas portas para a exploração de fenômenos fotônicos em ambientes desordenados, permitindo uma compreensão mais profunda das propriedades ópticas da luz em sistemas que desafiam as normas tradicionais. Com esse avanço, fica evidente que a ciência está cada vez mais próxima de entender e utilizar a complexidade a seu favor, explorando fenômenos que antes pareciam ser apenas teorias abstratas. Essa colaboração internacional exemplifica como a união de esforços pode trazer insights importantes e aplicações práticas em um campo que ainda guarda muitos mistérios.
(Colaborou Roger Marzochi)