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Imagem de uma pessoa de costas vendo uma texto com o óculos falante, Orcam. (Crédito: José Fernando Ogura/AEN)
Estado do Paraná investiu na compra de óculos falantes em 2023. (Crédito: José Fernando Ogura/AEN)

O físico Eder Pires de Camargo, pessoa com deficiência visual e professor da Unesp, avalia que a intenção do legislador pode ser boa, mas que projeto deveria adquirir outros equipamentos mais importantes para a comunidade.

As pessoas com deficiência visual estão em um intenso debate neste ano acerca do Projeto de Lei 2669/22 que está na Câmara dos Deputados, em Brasília, no qual obrigará as secretarias de Educação e a de Ciência, Tecnologia e Inovação dos Estados a disponibilizar aos alunos cegos os “Óculos Falantes”, chamado de Orcam. O dispositivo usa uma câmera que se conecta à haste dos óculos que é capaz de ser usado para leitura, como forma de ajudar na educação e socialização das pessoas com deficiência visual.

O problema, no entanto, é que ele não lê equações matemáticas, podendo não contribuir, neste aspecto, ao ensino de ciências. “Algo que parece ter uma tecnologia muito inovadora, acaba virando apenas uma quinquilharia nas mãos daqueles e daquelas que realmente precisam de uma tecnologia assistiva, mas não foram chamados a discussão”, diz Janaína Dutra, integrante da Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão (JEDI) da Sociedade Brasileira de Física (SBF).

Close-up da parte lateral da cabeça de uma mulher, mostrando a câmera da haste do óculos falante, Orcam. (Crédito AEN)
Equipamento faz uma foto de textos, objetos e rostos e, por meio de IA, informa em áudio os dados ao deficiente visual. (Crédito AEN)

A câmera do dispositivo faz uma foto de uma página de um livro, ou de uma nota de dinheiro, por exemplo. E, por meio do uso de Inteligência Artificial, diz ao usuário através de um alto-falante colocado próximo ao ouvido, o conteúdo daquilo que é apontado com o dedo, que pode ser um texto impresso. O sistema identifica, inclusive, objetos e faz até reconhecimento facial. O Estado do Paraná já se adiantou e investiu no ano passado R$ 2,19 milhões para a aquisição do dispositivo, cujo valor unitário é de R$ 14,9 mil, segundo a Agência Estadual de Notícias (AEN) do Estado.

Mas o projeto, de autoria do deputado José Nelto (PP-GO), está sob crítica porque o dispositivo não é capaz de transcrever equações matemáticas usadas em diversas disciplinas, como a própria Física, criando grande preocupação sobre a qualidade do ensino. Em abril deste ano, o projeto foi aprovado na Comissão de Educação e está na Comissão de Finanças e Tributação. “Os óculos falantes acabam por adicionar o poder de falar em voz alta aquilo que está sendo lido, por meio de inteligência artificial, facilitando a leitura das pessoas que possuem deficiência visual”, diz Nelto, segundo a Agência Câmara de Notícias.

“Precisamos mostrar aos congressistas que não aceitamos essa proposta que enfia goela abaixo da sociedade uma tecnologia imprestável para a leitura de símbolos de matemática, química, física, etc. Que repudiamos o Projeto, pois ele pretende incentivar a compra de uma engenhoca que não lê planilhas, não reconhece tabelas e não descreve objetos e nem reconhece figuras que aparecem com frequência em materiais didáticos. E que rejeitamos a implantação na educação de crianças e adolescentes cegos e com baixa visão de um dispositivo que não consegue converter em áudio sequer uma lauda inteira de texto impresso, enquanto existem aplicativos gratuitos dezenas de vezes mais avançados”, diz um texto que critica o projeto, que tem circulado em mensagens de Whatsapp de usuários que são pessoas com deficiência visual no intuito de votar contra o projeto em Enquete na Câmara. “Diga não ao capacitismo e não deixe nosso dinheiro ser desperdiçado, enquanto crianças e adolescentes cegos necessitam de recursos mais adequados e urgentes.”

O físico Eder Pires de Camargo, pessoa com deficiência visual e professor da Unesp de Ilha Solteira, diz que a intenção do legislador é boa. “Mas é preciso ouvir mais a pessoa com deficiência visual”, afirma Eder, que acredita que o poder público faria muito melhor se investisse em outras tecnologias mais importantes para o aprendizado da pessoa com deficiência visual. Ele próprio usa essa tecnologia, mas avalia que, por enquanto, seus recursos são muito limitados para a leitura de equações, gráficos e tabelas.

“O equipamento é útil, mas ele promete mais do que vai cumprir. Ele não devolve a visão ao cego. Ele até faz boa leitura de textos, mas para reconhecimento de rosto ele não é bom, nem para matemática”, afirma. “Ele não consegue descrever as equações. E, então, o Braile é indispensável”, diz ele, que leciona disciplinas para os cursos de Licenciatura em Física, Matemática e Biologia e para os cursos de Engenharia e, na pós-graduação, leciona disciplinas relacionadas à inclusão de alunos público alvo da educação especial. Ele ainda coordena o grupo de pesquisa Ensino de Ciências e Inclusão Escolar (Encine).

Nascido em Lençóis Paulista, Eder começou a perder a visão entre os 6 para os 7 anos, devido à uma doença degenerativa. Aprendeu Braile aos 17 anos. Entre 1992 e 1995, época no qual cursou Física na Unesp de Bauru, Eder pedia aos professores para que falassem enquanto escreviam na lousa. Desta forma, ele escrevia em folhas de sulfite as informações como complemento com uma caneta grossa, cuja letra só enxergava com a visão periférica que ele ainda mantinha, mas que hoje está mais fraca. Ele fazia os exames da faculdade em dias diferentes dos demais alunos, respondendo as questões na lousa, que eram escritas pelo professor na prova. Foi a partir do mestrado e doutorado em educação para ciências que o computador entrou em sua vida, ajudando-o muito a ler textos.

Eder orientou o doutorado de Julio Cesar Queiroz de Carvalho, na Universidade de São Paulo (USP), sobre uso de software para o ensino de Matemática e Física a alunos com deficiência visual e explica que há programas muito mais importantes do que o Orcam. Em primeiro lugar, Eder afirma que toda pessoa com deficiência visual precisaria ter um equipamento chamado Linha Braile, que é um dispositivo que traduz em braile tudo que está escrito no computador. E que o uso dos softwares Lattex e NVDA, que narra ao cego o que está escrito em textos matemáticos no computador, que é mais eficaz que o Orcam, em sua avaliação.

“Com o NVDA você domina o texto, pode selecionar parágrafos, editar, cortar, grifar. Já o Lattex é uma forma muito usada no mundo universitário de uma forma não convencional de escrever matemática, muito usado na Física para escrita de equações matemáticas”, explica Eder. “E se você conecta uma Linha Braile no computador, a pessoa com deficiência visual consegue perceber com a ponta do dedo, tateando os códigos matemáticos na ponta do dedo. O pessoal deveria fazer lei para comprar Linha Braile, porque não é barato. Isso seria excelente!”

(Colaborou Roger Marzochi)