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Cientistas do CBPF, SOAR e LNA participaram da detecção de uma explosão raríssima de um sistema binário estrela de nêutron/buraco negro fora da Via Láctea, que uniu a comunidade científica mundial, inclusive do espaço.

Era uma terça-feira de trabalho normal, o que significa uma jornada exigente, como ocorre sempre na vida do astrônomo e professor Clécio Roque De Bom, coordenador científico do Laboratório de Inteligência Artificial Aplicada do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). A grande expectativa de Clécio naquele 7 de março de 2023 era comemorar à noite o aniversário da esposa Patrícia. Mas, bem no fim do expediente, foi soado um alerta: havia sido identificado no espaço um brilho intenso, uma poderosa emissão de raios gama, fora da Via Láctea.

Os raios gamas são emissões eletromagnéticas 10 trilhões de vezes mais energéticos que a luz visível, geradas em galáxias com núcleo ativo, buracos negros e explosões de estrelas em supernovas e colisões de estrelas de nêutrons. A adrenalina cresceu rapidamente no CBPF. Os cientistas trabalham em conjunto, coordenando esforços para acompanhar eventos celestes, uma vez que, devido as condições de observação e a rápida evolução do evento, é preciso a atuação de mais de um telescópio para investigar o fenômeno. Clécio lembra, inclusive, que esse tipo de trabalho se assemelha a um tipo de investigação policial, que possuiu diversos protocolos e indícios, para montar um caso.

Ele colocou em operação a observação desse evento grandioso por meio do Southern Astrophysical Research Telescope, ou simplesmente SOAR, um telescópio óptico com espelho primário de 4,1 metros de diâmetro que se localiza em Cerro Pachón, uma montanha dos Andes Chilenos, 2,7 mil metros acima do nível do mar. Inaugurado em 2004, em parceria com o CNPq e instituições americanas, o Brasil é sócio majoritário do empreendimento, com 31% do tempo de uso do telescópio.

Pulsos energéticos de raios gama são conhecidos entre os astrônomos pelo nome de gamma ray burts (GRBs). E o interessante desse evento é que ele se prolongou para além de dois segundos, o que significava que era um evento de longa duração, o que não é esperado para colisões de estrelas de nêutrons. Há, claro, um pico na emissão de raios gama, que ao longo do tempo vai se esvaindo na imensidão do espaço. Segundo Clécio, é a segunda vez que os cientistas captaram uma emissão dessa magnitude, mas é a primeira vez que uma explosão tão intensa possa provavelmente ter ocorrido da fusão entre duas estrelas de nêutrons ou de uma estrela de nêutrons com um buraco negro.

Devido à falta de dados sobre ondas gravitacionais nesse evento específico, batizado de GRB 230307A (sigla que usa a data do evento começando por ano, mês e dia), não é possível medir diretamente as massas para determinar a presença de um buraco negro. O que se sabe é que o evento poderoso resultou na chamada kilonova, uma explosão raríssima entre astros “pesos-pesados”.

Uma estrela com mais de oito massas solares, por exemplo, termina sua vida após consumir todo o seu hidrogênio em sua fusão nuclear em uma estrela de nêutrons, ou em buraco negro, tudo depende de sua massa. Esse sistema que entrou em colisão era binário, ou seja, estavam ligados gravitacionalmente. E a explosão em Kilonova, afirma Clécio, é um evento raríssimo.

“Provavelmente é uma nova população de colisão de estrela de nêutron que a gente está descobrindo agora. O primeiro evento longo de gamma ray burst associado a Kilonova ocorreu há uns dois anos. Foi a primeira vez que alguém percebeu que isso podia acontecer. E agora foi a segunda, sendo que essa foi bem mais energética”, explica ele, em entrevista ao Boletim SBF. Os resultados dessa observação foram publicados no artigo “A lanthanide-rich kilonova in the aftermath of a long gamma-ray burst” na revista Nature, no dia 21 de fevereiro de 2024.

Clécio e o cientista Martín Makler, também do CBPF, fizeram sua parte na investigação, por meio do SOAR. E assinam também o artigo junto com os pesquisadores brasileiros Felipe Navarete, astrônomo residente no SOAR. Luciano Fraga, coordenador de astronomia do Laboratório Nacional de Astrofísica (LNA), colaborou nos primeiros esforços de estudo do fenômeno, mas preferiu não assinar o artigo. O coordenador do Laboratório de Inteligência Artificial Aplicada do CBPF estava ansioso não apenas em desvendar esse mistério luminoso, mas também para saber se conseguiria comemorar o aniversário da esposa.

Em 2019, por exemplo, Clécio recebeu um chamado parecido, mas sobre a detecção de ondas gravitacionais, o que iniciou uma investigação que durou nada menos do que 15 dias e noites ininterruptas seja de análise ou na observação com múltiplos instrumentos. “Consegui comemorar o aniversário! A gente tinha que localizar a observação, fazer o que a gente chama de ‘finding chart’, que é você localizar onde está o evento, localizar a provável galáxia host (hospedeira do evento). Nem toda observação é o evento em si. O evento é tão fraco, tão fraco, que às vezes ele escapa em determinado filtro e da exposição do limite do telescópio.  Mas nós obtemos limites no seu brilho”, explica.

“E já passado no outro dia, a gente tinha que achar gente para observar, porque na observação muitas coisas podem dar errado. Pode ter nuvem, pode acontecer mau tempo, você precisa de gente para reduzir o dado. Para mim, por exemplo, tem que sempre ter uma equipe de pessoas e é mais importante ter muitos olhos olhando, porque se você cometer um erro durante a observação, aquele dado é invalidado, não serve para mais nada. Você precisa ter gente atenta, e normalmente no meio da noite, quando está todo mundo cansado, já trabalhou durante o dia.”

Por isso, o trabalho das equipes que observaram o evento, contribuiu para montar o caso, criar os indícios e evidências de que estávamos olhando para uma Kilonova para que seja possível habilitar outros telescópios para observação como o Hubble e James Webb. Com esses indícios, foi possível parar a programação de observações previstas desses telescópios no espaço para olhar para esse evento específico. É por isso que, segundo Clécio, esse trabalho se assemelha a uma investigação policial, por exemplo. A cada etapa é preciso cumprir uma série de protocolos para se ter a certeza de que estamos diante de um evento raro, que seja motivo suficiente para direcionar o olhar de não apenas outros telescópios na Terra, mas aqueles que estão no espaço.

“É como montar um caso, cumprindo várias etapas, reunindo provas”, explica. “Esse tipo de explosão é um evento raríssimo. A gente não espera ver nada aqui perto da Via Láctea. Mas, na verdade, a gente até tem dificuldade de associá-la a uma galáxia. Quando a gente olha a imagem, tem aquela imagem bonita do James Webb, você vê em cima de um offset, uma distância grande entre o brilho que você está vendo e a galáxia que seria a hospedeira, a host. Então, existe toda uma discussão sobre qual é a galáxia que é a host, ou seja, onde ela aconteceu. Tem uma galáxia que certamente é a mais provável, mas os mecanismos que fizeram ela ficar tão longe ainda são discutidos. Como é que ela foi parar lá? Será que ela foi ejetada da galáxia?”

O evento demonstrou também que essa explosão provocou a criação das chamadas terras raras e até mesmo de ouro, explica Clécio, membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC) desde janeiro de 2024. “Isso transforma o nosso trabalho de certa forma poética, porque todo mundo tem um pouquinho de ouro, um anel de ouro, ou fez um folheado à ouro, tem alguma coisa na sua mão, no seu colar, em alguma coisa, que muito provavelmente foi formado durante esse tipo de evento que antecedeu a formação do nosso sistema solar. Então, isso provavelmente, em algum momento do passado cósmico, houve uma coalescência, ou seja, uma colisão de dois objetos compactos que provavelmente são duas estrelas de nêutrons que geraram esses elementos que, durante a formação do nosso sistema solar, acabaram na Terra e que em algum momento a gente usa esses metais para fazer bateria de carro, para fazer anel, esse tipo de coisa.” A aliança de ouro, naquele dia de março de 2023, foi amplamente comemorada no aniversário da esposa de Clécio, assim como no trabalho colaborativo de cientistas ao redor do mundo, que nos permite conhecer cada vez mais sobre o Universo.

Por Roger Marzochi