Análise foi realizada com 234 crianças, jovens e adultos de Iporã e Palotina e debatida na 8ª Conferência Internacional de Mulheres na Física; a imagem da mulher associada a áreas científicas só começa a crescer a partir da 8ª série do Ensino Fundamental
Uma pesquisa realizada com 234 alunos do Ensino Fundamental, Médio e da Graduação no Paraná revelou que a identificação da mulher desempenhando funções relacionadas à ciência e tecnologia começa a crescer apenas no 8º ano do Ensino Fundamental, subindo paulatinamente até a Graduação. O trabalho, que teve início em março, foi realizado pelo projeto Meninas nas Ciências Rocket Girls, coordenado pela física Mara Fernanda Parisoto, professora de Licenciatura em Física da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Setor Palotina. Os resultados em breve serão divulgados no Instagram do projeto e será enviado para submissão em uma revista científica.
Um relato desse estudo, que à época não estava concluído, esteve presente em julho nas discussões da 8ª Conferência Internacional de Mulheres na Física, evento online no qual Mara chefiou a delegação brasileira. O comitê brasileiro ainda era formado por Janaína Dutra Silvestre Mendes, Taneska Santana Cal, Gabriela Padilha e Antônio Carlos Fontes Santos. “Os problemas são comuns em todos os países: há falta de interesse das meninas em ingressar na área da Física, que é uma exclusão horizontal. E há a exclusão vertical, quando se percebe que o número de mulheres em doutorado e pós-doutorado vai se reduzindo, criando grande desigualdade de gênero”, explica Mara.
Entre os textos de debate da Conferência esteve, por exemplo, o estudo “Choosing Between Physics and Engineering, by Gender: A Canadian Study of Socio-Cultural Factors”, de Svetlana Barkanova (School of Science and Environment, Memorial University), Amit Sundly (Division of Community Health, Faculty of Medicine, Memorial University), Janna Rosales (Faculty of Engineering and Applied Science, Memorial University) e Cecilia Moloney (Department of Electrical and Computer Engineering, Memorial University).
“Os dados foram coletados no outono de 2022 em uma universidade no Canadá, usando um questionário online. As mulheres ainda estão sub-representadas em física e engenharia no Canadá. Especificamente, nossa análise se concentra no fator de gênero nessas disciplinas em termos de contexto social e cultural. Apresentamos e discutimos as semelhanças e diferenças entre estudantes que se identificam como femininos ou masculinos e como suas respostas variam dentro e entre essas disciplinas”, informa o texto do estudo debatido no evento. “E isso ocorre no mundo inteiro”, afirma Mara.
Em março deste ano, a equipe de Mara começou a discussão para a realização da pesquisa com os alunos, no intuito de traçar estratégias para reverter esse quadro. Após a elaboração de um questionário, inspirado pela revista “Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em ciência, tecnologia, engenharia e matemática”, os alunos do Ensino Fundamental e Médio da cidade de Iporã, na região noroeste do Paraná, e os alunos do Setor Palotina da UFPR foram instigados a responder às questões.
Em uma das questões endereçadas a estudantes de 15 anos sobre quem desempenharia melhor funções que variavam sobre o debate de existir vida em Marte à ciência associada à eliminação do lixo, os homens responderam que seriam mais aptos a darem explicações. A única opção em que as meninas levaram vantagem estava relacionada a descrever o papel dos antibióticos no tratamento de doenças.
Para Lara Eduarda Villwock, estudante do último ano de Veterinária e bolsista de iniciação científica do projeto, essa posição mostra que as meninas têm uma menor autoeficácia, que é quanto a própria pessoa se acha capaz de realizar determinadas tarefas. E mostra que parece haver na sociedade uma visão de que a mulher tem um talento natural para o cuidado.
Na segunda parte do questionário, as pesquisadoras perguntam quem é mais capaz de realizar uma série de atividades, a mulher, o homem, ou ambos. E entre as atividades estavam preparar uma refeição gostosa, trocar fraldas, sobre quem consegue costurar, trocar um chuveiro queimado, ser astronauta, pilotar um avião e resolver um problema matemático difícil. E são surpreendentes as repostas de acordo com a série de cada aluno.
A resposta ambos ou a maior participação da mulher no questionário só cresceu a partir do 8º ano do Ensino Fundamental. A professora Mônica Letícia de Souza, formada em Licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e no fim da Licenciatura em Física pela UFPR setor Palotina, participou do projeto na aplicação dos questionários em Iporã. Ela explica que esse resultado mostra a realidade de vida das crianças, nos quais quase sempre é a mãe, a tia ou a avó quem cozinha, troca fraldas, cuida da saúde da família. Houve um trabalho prévio com os alunos do 8º ano sobre os papeis da mulher na sociedade, o que pode explicar a inflexão dos dados a partir dessa série.
“E eu como professora preciso colaborar para que eles possam pensar que as funções ligadas à ciência e tecnologia não têm distinção entre homem e mulher. Não é culpa da família eles pensarem assim. Mas é preciso trazer essa reflexão desde as séries iniciais para mostra que a mulher pode ter outros papeis”, diz Mônica. “Por isso, é importante que haja mulheres e homens em vários tipos de papeis diferentes, essa é a necessidade da representatividade”, diz Mara.
Essa abordagem da representatividade é muito importante, como conta a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie no livro “Sejamos todas feministas” (Companhia das Letras), no qual é debatido como é cristalizado um certo papel da mulher na sociedade, como se as tarefas que lhe são impostas fossem naturais como um gene. E como é importante despertar nas crianças seus talentos independentemente de gênero.
“Meninos e meninas são inegavelmente diferentes em termos biológicos, mas a socialização exagera essas diferenças. E isso implica na autorrealização de cada um. O ato de cozinhar, por exemplo. Ainda hoje, as mulheres tendem a fazer mais tarefas de casa do que os homens — elas cozinham e limpam a casa. Mas por que é assim? Será que elas nascem com um gene a mais para cozinhar ou será que, ao longo do tempo, elas foram condicionadas a entender que seu papel é cozinhar? Cheguei a pensar que talvez as mulheres de fato houvessem nascido com o tal gene, mas aí lembrei que os cozinheiros mais famosos do mundo — que recebem o título pomposo de “chef” — são, em sua maioria, homens”, escreve Chimamanda.
O estudo feito no Paraná busca o padrão de raciocínio e decisão de escolhas em relação à escolha de gênero para a realização de atividades diárias e científicas. É um início para se debater a maior inserção da mulher na ciência. E, ao mesmo tempo, o comitê que participou da Conferência em julho avalia que em termos de políticas públicas o Brasil está avançando gradualmente no sentido de estimular a atuação feminina na ciência. O comitê brasileiro destacou que o governo atual prevê uma Política Nacional de Inclusão, Permanência e Crescimento de Mulheres e Meninas em Ciência, Tecnologia e Inovação.
“De acordo com o Palácio do Planalto, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) lançará um edital público focado em mulheres nas áreas de ciências exatas, engenharia e computação, avaliado em R$ 100 milhões. Outro destaque de 2023 foi o reajuste orçamentário das bolsas de pesquisa. Houve um aumento de 40% nas bolsas de mestrado e doutorado da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e do CNPq. Apesar dos incentivos, ainda precisamos percorrer um longo caminho para alcançar condições de trabalho adequadas e iguais. A pandemia aumentou as desigualdades entre ricos e pobres no Brasil”, informa o comitê.
Mara lembra ainda do projeto Parent in Science, grupo de cientistas que debatem a maternidade e a paternidade na ciência, defendendo direitos às mulheres em licença à maternidade que participam de projetos científicos e à flexibilização das regras de produtividade científica. E há, ainda, o programa Futuras Cientistas, que estimula alunas e professoras do ensino público a ter contato com as áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática. As inscrições terminaram em 11 de setembro, com auxílio do CNPq de R$ 600.
Mara tem esperança que ocorra uma mudança positiva na participação da mulher na ciência. Natural de Chapecó, em Santa Catarina, o exemplo da mãe foi um dos motivos que a levou a estudar Física. “Eu ficava olhando para o céu querendo saber de tudo. E, também, por inspiração da minha mãe que consertava chuveiro, furadeira, é algo bem raro de ver. Ela trocava o pneu, gostava muito dessa parte de construção. E ela gostava de fazer várias perguntas e deixar a gente pensando. Hoje, como professora, eu faço isso: perguntas que estimulem os alunos pensarem.”
(Colaborou Roger Marzochi)