Por Mariana Hafiz

Professora do Instituto de Física da Universidade Federal do Alagoas (UFAL), em Maceió, Fernanda Selingardi Matias percebeu que se interessava por ciência no primeiro ano do Ensino Médio, quando fazia Olimpíadas de Física – chegando a participar da etapa nacional. Na época moradora de Recife, no estado de Pernambuco (PE), ela se lembra de comparecer a algumas atividades que a Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) realizava para os participantes das Olimpíadas e de conhecer o departamento de Física da universidade, o que a fez optar e ingressar no curso de Bacharelado em Física em 2004.

A família, naquela época, talvez preferisse que ela fizesse alguma Engenharia. “Eles pensavam que se eu fizesse Física eu ia ser professora e não ganharia tão bem, que não era o mercado de trabalho mais tradicional com que a gente está acostumado”, recorda. “As pessoas conhecem pouco da carreira acadêmica dentro da Universidade e eu também não entendia direito o que era ser professor universitário ou fazer pesquisa. Mas aos poucos eles foram entendendo e vendo que têm muitas oportunidades. Quando comecei a fazer colaboração com o exterior, por exemplo, e tinha que escrever artigos em inglês aí começam a dar uma valorizada, acham que é um pouco mais sério (risos)”. 

A escolha da carreira acadêmica foi ficando mais clara também para Fernanda, que, de início, achava que o curso seria semelhante à Engenharia. Foi com o passar dos anos que o funcionamento da carreira foi ficando mais claro e começou a fazer sentido, especialmente na pós-graduação. Ela recorda que um dos momentos em que sentiu que queria continuar na área foi a sua defesa da dissertação de mestrado, isto é, um projeto de pesquisa original, que é desenvolvido ao longo de dois anos, em média, e defendido perante uma banca para a obtenção do título de Mestre. 

Naquele momento ela já havia percebido que tinha adquirido conhecimento suficiente sobre um tema para falar dele e que queria seguir na carreira. A certeza, contudo, veio na próxima etapa. “No fim do doutorado eu já tinha certeza que ia fazer concurso para universidade e que queria seguir fazendo pesquisa naquele tema. Ainda tinha muita coisa que eu queria entender depois da minha tese”, afirma a pesquisadora.

Ela conta que as mulheres sempre foram minoria nos departamentos e institutos onde foi aluna, mas que, no começo dos anos 2000, o debate não era tão amplo como hoje em dia. Na verdade, a ausência de modelos femininos na ciência nesse tempo eram sentidos por ela como algo individual, sem necessariamente ter noção de que isso envolvia questões coletivas e sociais do ambiente científico.

Hoje, na posição de professora, ela recebe muitas dessas questões das suas alunas, que a procuram como uma referência, sem necessariamente quererem trabalhar na sua área de pesquisa. “Eu comecei a perceber que é difícil ser mulher cientista no geral, na física talvez um pouco mais porque tem uma questão da representatividade. Realmente somos poucas, 20% no máximo na maioria dos institutos”, afirma a professora. “Eu costumo dizer que eu me descobri uma mulher na física só quando virei professora e as estudantes vinham com questões para mim que eu percebia antes, mas pensava que era só comigo”. 

Legenda: Profa. Fernanda Matias, ao meio, e integrantes do seu grupo de pesquisa comparecendo a Workshop de Pós-graduação em Física na Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Algo que mudou bastante essa percepção foi quando Fernanda se tornou mãe, quase dois anos atrás. Além da pandemia de Covid-19 que avançava no mundo, começavam a aparecer indícios de que as dinâmicas da carreira se reorganizariam. Parte disso tem a ver com a progressão da carreira de docente, ou seja, uma série de etapas que pessoas concursadas em cargos de professores de ensino superior avançam até um certo “topo” da carreira. Para tentar avançar na progressão, há critérios que elencam notas aos professores – vale lembrar que, no Brasil, professores universitários são os principais responsáveis por tocar projetos de pesquisa e fazer ciência. 

“Isso varia de universidade para universidade, mas na progressão você tem que dizer o que você fez nos últimos dois anos em termos de ensino (aulas dadas, essencialmente), produção intelectual, extensão e gestão”, explica Fernanda. “Na de ensino é muito claro que você não tinha que cumprir com a carga horária de aulas do semestre em que você está em licença maternidade, então você vai ter a pontuação máxima mesmo sem ter dado aula. Dentro desses dois anos, os seis meses que você teve licença não vão contar. Já para produção intelectual, digamos que você tem que ter publicado cinco artigos naqueles dois anos para tirar 10 na sua progressão. Nesse caso, se você esteve em licença maternidade, esses cinco teriam que ser renormalizados porque você só estava de fato trabalhando durante um ano e meio daqueles dois que estão sendo avaliados. A questão é que isso não existe claro em nenhum lugar”, ressalta. 

Parte do trabalho da Fernanda hoje está junto das demais membras da Comissão de Justiça, Equidade, Diversidade e Inclusão (JEDI) da Sociedade Brasileira de Física (SBF), que consiste em levantar dados sobre os processos de progressão em diferentes universidades, que insiram nas suas políticas questões como essa da licença maternidade. Além disso, ela toca suas pesquisas na área de Física de Sistemas Complexos, desenvolvendo modelos matemáticos que descrevem os sinais do cérebro. “Como tem muita atividade elétrica dos neurônios, a gente pode olhar para ela não se apegando muito ao processo químico, mas pensando nela como um circuito elétrico, que a gente em física está acostumado a tratar”, explica. 

Assim como trânsitos, mapas de aeroportos, incêndios florestais e vaga-lumes piscando sincronizadamente, Fernanda detalha que o cérebro pode ser entendido como um sistema complexo, permitindo calcular seu grau de “desordem”, ou quantificar se um determinado sinal durante diferentes atividades (dormindo, lendo ou fazendo um cálculo matemático, por exemplo) é mais ou menos complexo. “Como física eu analiso essas séries temporais desses sinais elétricos. Será que quando a pessoa está dormindo esse sinal tem propriedades diferentes de quando ela tá acordada? Será que, olhando só para esse sinal, dá para dizer o que a pessoa está fazendo?”, provoca. Em um de seus projetos, a cientista aplica esses métodos para classificar os estágios da atividade cerebral durante o sono, que lhe rendeu o prêmio L’Oréal Brasil para Mulheres na Ciência. Com isso, ela foi reconhecida como uma das sete mulheres com as pesquisas mais importantes do país.

Legenda: Fernanda, ao meio, e as demais premiadas da L’Oreal em capa da revista Marie Claire. Cada uma recebeu R$ 50 mil para continuarem suas pesquisas.

Os desafios nessa trajetória não são poucos e ela se lembra dos tipos de preocupações que as mulheres na física mantém, que são diferentes em relação aos homens. Elas vão desde as questões de produtividade e de carreira já apresentadas aqui, mas também piadinhas no corredor justificadas com “estava só brincando” e se preocupar com a aparência ou roupa na hora de dar aula ou uma palestra – buscando tanto provar que a vestimenta não importa quanto reafirmar que é possível ser mulher e cientista e ser feminina, ao contrário do estereótipo. Contudo, mesmo depois de perceber ao longo da sua carreira que “além de mulher cientista, você vira uma mãe na ciência”, Fernanda avalia que vale a pena e que está otimista. “Tem um lado positivo em que você também percebe que está sendo útil na comunidade incentivando outras meninas e isso é motivador. Ao longo do caminho é ruim sofrer com essas questões e ter que lidar com elas, mas ao mesmo tempo eu me encontrei tentando melhorar o ambiente para quem vem depois”. 

Por isso, seu principal conselho para as próximas gerações de meninas cientistas é que elas “procurem uma rede de apoio. A carreira acadêmica tem obstáculos independente do gênero, mas se você já tem uma questão de classe, raça e gênero que a deixa ainda mais discrepante, haverá momentos difíceis. Então, procure por pessoas que estão no mesmo estágio que você e que já passaram por isso, para ver que acontece com outras pessoas. Algumas pessoas estarão mais abertas e acessíveis que outras, mas encontre aquelas que servirão como mentoras ou apoio na carreira. Isso ajuda muito, é uma questão de ter o coletivo e de abrir espaço para todo mundo ir junto”, conclui.